Carta de Pero Vaz de Caminha (analisada e explicada)
Escrita em 1500 e datada de primeiro de maio, a carta de Pero Vaz de Caminha (também conhecida como a Carta a el- Rei Dom Manoel sobre o achamento do Brasil) é um documento fundador da história do nosso país.
Caminha, escrivão a bordo das caravelas de Cabral, acabou por ser o cronista da nova colônia e coube a ele a árdua tarefa de narrar o encontro de culturas tão distintas. É dele o primeiro olhar sobre o continente até então pouco (ou nada) conhecido.
A carta que escreveu a bordo da nau é considerada uma literatura de informação.
Análise da Carta de Pero Vaz de Caminha
Princípio do relato
A Carta é considerada uma espécie de documento de batismo da nossa terra. É o primeiro olhar de um estrangeiro acerca do que havia no território que viria a se tornar o Brasil.
Sobre o destinatário da carta, é ao rei Dom Manoel I que Caminha se dirige no princípio da escrita:
Senhor: Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer.
Caminha sublinha logo no princípio do texto que dará um parecer parcial, sujeito as suas limitações.
Num gesto de humildade, ele se questiona se poderia narrar com propriedade aquilo que viu, e por fim conclui que tentará se deter-se o máximo possível aos fatos:
Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Objetivo da carta: a fome de ouro
A carta dirigida ao rei é uma literatura informativa.
Caminha foi o personagem eleito para criar a primeira descrição do Brasil. Trata-se de uma tarefa dura que exigia a descrição pormenorizada de absolutamente tudo o que o escrivão viu: fauna, flora, comportamento dos nativos, curiosidades da região.
O escritor sublinha a princípio a imensa riqueza natural da nova colônia. Ao descrever a natureza perfeita presente no novo mundo, ele demonstra ter uma visão paradisíaca da terra que virá a ser conquistada pelos portugueses.
Na redação da carta também é possível perceber rapidamente aquilo que os historiadores posteriormente chamaram de fome de ouro, ou seja, a demonstração do interesse dos portugueses pelo lucro que poderiam subtrair a partir da exploração da futura colônia.
Lemos ao longo já das primeiras linhas o desejo de conquista sobretudo de materiais preciosos (ouro e prata). O escrivão sublinha a partida a ausência desses bens materiais tão ansiados:
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos.
Caminha, sabendo do interesse do rei de descobrir depressa o que poderia render a nova terra, se adianta e redige logo aquilo que imagina que seria retirado da terra.
O encontro com o nativo
O encontro com o índio, completamente diferente do explorador, ocupa boa parte da carta. Caminha usa o recurso da comparação ao redigir o seu relato e fica claro que o escrivão tenta ler de que maneiras essas pessoas tão diferentes dos navegadores poderiam ser úteis ao rei de Portugal.
Ao narrar, Caminha observa como os locais se comportam: o que vestem, como têm o cabelo cortado, de que forma se alimentam, como dormem, como lidam uns com os outros e com os estrangeiros.
O escrivão se pergunta indiretamente: serão eles bons ou cruéis? Mas, se no início da carta Caminha parece manter uma visão mais generosa sobre os desconhecidos, logo deixa escapar um ponto de vista profundamente ocidental e eurocêntrico ao acusar os índios de selvageria.
Caminha tenta ler o outro a partir dos indícios que lhe são dados, apesar do outro em questão ser completamente diferente de tudo o que o escrivão já tinha visto anteriormente.
Aqueles que viriam a ser denominados de índios posteriormente são o oposto dos portugueses em vários aspectos:
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador.
A nudez no nativo é avessa ao excesso de roupa carregada pelos navegadores. Também o seu comportamento inocente contrasta com a postura interesseira daqueles que perpetravam o novo território em busca de bens materiais.
A nudez
Caminha sublinha em diversos pontos da carta a nudez do povo que encontra e a ausência de vergonha por parte dos índios, algo impensável para um cidadão europeu.
Percebe-se nesses momentos da escrita o embate entre a ideologia católica da nudez pecaminosa e o choque com índios que não carregavam qualquer espécie de culpa ou pudor por terem o corpo desnudo:
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas.
A catequização dos índios
Caminha, oriundo de um país profundamente católico, deixa evidente na carta a missão moral e religiosa que os europeus supostamente teriam de catequizar os índios.
Caberia aos portugueses a conversão do gentio. Com um olhar eurocêntrico, os navegadores acreditavam que o índio era como uma página em branco, sem qualquer tipo de crença:
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
Convém retomar essa conclusão que aparece com destaque nos últimos parágrafos do texto.
O autor do relato deixa clara a importância de catequizar os nativos para que o projeto de conquista seja bem sucedido:
Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
A presença de informações técnicas na Carta
Pero Vaz de Caminha é o cronista da expedição de Pedro Álvares Cabral e na carta registra toda a aventura, desde a saída de Portugal até o inesperado encontro entre o português e os nativos nas novas terras.
O relato contém uma série de informações técnicas como datas e responsabilidades da navegação que permitem que se imagine de modo mais preciso o contexto da excursão:
A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã- Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas.
O desaparecimento da carta
O escrito de Pero Vaz de Caminha ficou perdido durante mais de três séculos e só foi reencontrado em 1839.
Apesar de ter sido encontrado, o texto não era compreensível e a primeira versão modernizada, com uma escrita legível, só veio a público em torno de 1900 graças ao historiador brasileiro Capistrano de Abreu.
Onde está atualmente a Carta de Pero Vaz de Caminha?
O Manuscrito da Carta de Pero Vaz de Caminha encontra-se atualmente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, situado em Lisboa (Portugal).
Leia a Carta na íntegra
A Carta de Pero Vaz de Caminha encontra-se disponível para leitura na íntegra em formato pdf.
Ouça a Carta de Pero Vaz de Caminha
Quem foi Pero Vaz de Caminha
Nascido no Porto (em Portugal), no ano de 1450, Pero Vaz de Caminha entrou para a história ao ter sido nomeado escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral.
Coube ao escrivão produzir uma carta detalhista e, ao mesmo tempo, universal. Sua tarefa era compor diários de bordo relatando o percurso das caravelas de Cabral e as descobertas no novo continente.
Uma curiosidade: Caminha não era propriamente um escrevente, mas sim uma espécie de contador. Ele encontrava-se nas caravelas de Cabral porque estava indo fazer a contabilidade de uma feitoria que os portugueses estavam montando em Calicute, na Índia.
O gesto de escrever uma carta direcionada ao rei estava também permeada de um interesse pessoal. O genro de Caminha havia sido preso e exilado, enviado para as Ilhas de Cabo Verde. A prisão foi executada porque o genro havia agredido um padre dentro de uma igreja, o que lhe rendeu a terrível condenação. Caminha pretendia estreitar laços com Dom Manoel I a fim de fazê-lo perceber que a condenação do genro havia sido injusta.
Por esse motivo, Caminha acabou por se tornar cronista do reino na expedição de Cabral, que partiu de Portugal com cerca de 13 navios e 1500 homens a bordo.
A frota de Cabral seguiu viagem após o achamento do Brasil e ancorou em Calicute, como era suposto. As relações de amizade com os locais, no entanto, se deterioraram e a companhia sofreu um ataque por parte dos muçulmanos.
Durante o desentendimento cerca de trinta portugueses foram assassinados, entre eles Pero Vaz de Caminha.
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