Cora Coralina: 10 poemas essenciais para compreender a autora

Equipe Editorial
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Ana Lins dos Guimarães Peixoto (20 de agosto de 1889 - 10 de abril de 1985) era o nome de batismo da poeta Cora Coralina, uma brasileira que começou a publicar os seus trabalhos quando tinha 76 anos.

Em termos literários, é espantoso como uma mulher que cursou até a terceira série do curso primário tenha criado versos tão preciosos.

Para ganhar a vida, Cora Coralina trabalhou como doceira enquanto levava a escrita como um hobby paralelo. A poeta chegou a ser convidada para participar da Semana de Arte Moderna, mas não pôde se juntar aos seus pares devido às limitações impostas pelo marido.

Sua poética é baseada numa escrita do cotidiano, das miudezas, e é caracterizada por uma delicadeza e por uma sabedoria de quem passou pela vida e observou cada detalhe do caminho. Em resumo: a lírica de Cora é impregnada da história que a doceira viveu.

Apesar do início tardio na carreira literária, Cora Coralina é dona de uma produção consistente e tornou-se uma das mais celebradas poetas do país. Seus versos ganharam fãs mundo afora e a lírica goiana, sutil e ao mesmo tempo poderosa, vem sendo cada vez mais divulgada.

1. Aninha e Suas Pedras

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Um dos poemas mais conhecidos de Cora é Aninha e Suas Pedras. Nele vemos um eu-lírico disposto a dar conselhos ao leitor, criando com a audiência um espaço de intimidade e partilha.

A linguagem informal e coloquial pode ser percebida no tom de oralidade da escrita. Os verbos no imperativo sugerem quase uma ordem (recria-remove-recomeça-faz), sublinhando a importância daquilo que se diz e a necessidade de se seguir em frente.

O poema aborda com frontalidade a questão da resiliência e a urgência de tentar outra vez quando o plano não deu certo, mesmo que pareça não haver mais forças.

2. Conclusões de Aninha

Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.
O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?

O trecho acima é a parte inicial de Conclusões de Aninha e narra uma pequena história cotidiana, tão frequente nas cidades, quando uma pessoa humilde interrompe o caminho de um casal rumo ao carro e pede ajuda depois de explicar a sua situação pessoal.

Com uma linguagem coloquial e marcada pela oralidade, o sujeito poético nos apresenta a cena e a forma como cada um dos personagens se comportou.

O marido ofereceu ajuda financeira, mas não entrou em comunhão com a pessoa que pedia, nem sequer trocou uma palavra. A mulher, por sua vez, não ofereceu nada, mas soube ser ouvido e empatizou com aquela que estava em situação vulnerável. O trecho se encerra com uma pergunta sem resposta, que faz com que o leitor reflita sobre o comportamento dos dois personagens anônimos.

3. Mulher da Vida

Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e ápodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da vida,
Minha irmã.

Mulher da Vida - o título do poema - é uma expressão informal que se usa de modo costumeiro para nomear as prostitutas. Ao invés de lançar sobre essas mulheres um olhar contaminado de preconceito e distanciamento, o que o eu-lírico faz é sublinhar a comunhão que estabelece com ela.

Nem o eu-lírico nem a mulher da vida são nomeados no poema. Quando diz "Mulher da Vida, minha irmã", Cora destaca o que há de empatia e senso de união entre as duas: apesar de terem escolhidos caminhos distintos são irmãs, parceiras, desejam o bem uma a outra.

Conhecida como a profissão mais antiga do mundo (e os versos retratam essa ancestralidade quando afirmam "Ela vem do fundo imemorial das idades"), as prostitutas são identificadas no poema também pelo lugar onde estão: na zona, na rua.

Apesar de estarem em espaços distintos e possuírem condutas diferentes, as duas personagens são identificadas a partir do que têm em comum, o fato de serem mulheres.

4. Ofertas de Aninha (Aos moços)

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.
Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.

O poema acima se constrói com base na afirmação de uma identidade: ao longo dos versos vemos o eu-lírico destacar aquilo que se tornou.

O poema contempla ao mesmo tempo três tempos: o passado, onde adquiriu as experiências, o presente, onde declara com orgulho ser aquilo que é, e o futuro, onde está aquilo que deseja se tornar.

Com uma construção muito simples e um desejo de se aproximar o máximo possível do leitor, encontramos um eu-lírico honesto e despido de vergonhas, que reflete sobre os rumos que a sua vida tomou. Com uma postura sempre solar e otimista, os versos nos incitam a sermos criaturas melhores.

A autora sublinha em Ofertas de Aninha (Aos moços) - e de modo geral ao longo de toda a sua poética - a necessidade de ser resiliente, de perseverar, de tentar outra vez.

5. Becos de Goiás

Becos da minha terra...
Amo tua paisagem triste, ausente e suja.
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa.
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio.
E a réstia de sol que ao meio-dia desce fugidia,
e semeias polmes dourados no teu lixo pobre,
calçando de ouro a sandália velha, jogada no monturo.

Amo a prantina silenciosa do teu fio de água,
Descendo de quintais escusos sem pressa,
e se sumindo depressa na brecha de um velho cano.
Amo a avenca delicada que renasce
Na frincha de teus muros empenados,
e a plantinha desvalida de caule mole
que se defende, viceja e floresce
no agasalho de tua sombra úmida e calada

Os versos acima foram retirados de um poema mais extenso presente no livro Os Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, publicado em 1965.

O poema é um elogio à terra de Cora Coralina e pretende fazer um retrato da paisagem com um olhar apurado e voltado para o detalhe. O registro honesto contempla o bem e o mal: a umidade, o lodo, mas também o sol e a vitalidade representada pela avenca que renasce.

Os versos se encaminham do pequeno para o grande, do detalhe para a paisagem ampla, basta observar como o fio de água corre e logo parece se perder na perspetiva, dando lugar à visão do cano velho.

Com uma escrita visceral, Cora chama a atenção para aquilo que habitualmente achamos feio e que passa despercebido: os muros empenados, a planta quase morta com o caule mole.

Aqui também vemos impressa uma característica forte da lírica da poeta goiana: apesar da paisagem inóspita, existe um desejo de resistência, de perseverança, ou como diria Cora, de se defender, vicejar e florecer.

6. Meu Destino

Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida…
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida…

Meu Destino é, antes de tudo, um poema de um amor sereno, bem sucedido e duradouro. Os versos são um retrato da vida antes, durante e depois do encontro com o parceiro.

Nos quatro primeiros versos vemos o casal já junto: as linhas das mãos, o destino dos amantes se confundindo, a vida de um se misturando com a do outro. Depois parece haver um recuar no tempo e somos transportados para um tempo em que os dois ainda não se conheciam.

Por mero acaso, aparentemente, as vidas se cruzam, e ela vai em direção ao amado. O encontro que é descrito por dois verbos singelos: "Sorri. Falamos.". Tudo é narrado com profunda naturalidade e parece que o destino do casal foi todo encaminhado de modo aos dois ficarem juntos para sempre.

7. Ressalva

Este livro foi escrito
por uma mulher
que no tarde da Vida
recria a poetiza sua própria
Vida.

Este livro
foi escrito por uma mulher
que fez a escalada da
Montanha da Vida
removendo pedras
e plantando flores.

Este livro:
Versos... Não.
Poesia... Não.
Um modo diferente de contar velhas estórias.

Os versos acima inauguram o livro Poemas dos Becos de Goiás e Estorias Mais, lançado pela primeira vez em 1965. Trata-se de um poema profundamente autobiográfico e metapoético, que descortina os bastidores da escrita. Cora Coralina publicou o seu primeiro livro de poesia quando tinha já certa idade - para ser mais precisa a poeta possuía 76 anos na época -, o que fica claro nos primeiros versos de Ressalva.

A experiência de vida marca a poética de Cora e fica clara também nos versos acima. Notamos rapidamente que as palavras foram escritas por alguém com profunda vivência e que se aproveitou do tempo para colher sabedoria.

Em Ressalva encontramos uma metaliteratura, isto é, um texto que fala sobre si mesmo, que olha para dentro, para o seu próprio conteúdo, e o comenta. No poema o eu-lírico diz aquilo que pensa sobre a própria criação: não são versos nem poesia, é "um modo diferente de contar velhas estórias".

8. Todas as Vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai de santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute benfeito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras.

Todas as Vidas é dos poemas mais celebrados de Cora Coralina. Ao longo dos versos vemos a questão da identidade como um dos norteadores da lírica da poeta goiana.

Observamos também como as imagens do cotidiano e os pequenos objetos são elencados ao longo dos versos e ajudam a caracterizar as personagens que o eu-lírico deseja ilustrar. A chinelinha, por exemplo, é um símbolo da mulher do povo que nos auxilia a visualizar com mais precisão essa personagem.

Ao falar da sua própria identidade, Cora acaba abordando a complexa identidade das mulheres que viveram entre o final do século XIX e o princípio do século XX no Brasil. Criadas para serem esposas e mães, muitas abandoram a escola (caso de Cora, que cursou apenas até a terceira série do curso primário) e ficaram inteiramente voltadas para a vida familiar.

Em Todas as Vidas, no entanto, vemos que as mulheres vão muito além daquilo que havia sido planejado para elas. Na leitura dos versos vemos a maestria de uma mulher que não desistiu do mundo da literatura, muito embora tenha sido profundamente estimulada a abandonar esse caminho. Com uma linguagem simples e marcada pela oralidade, Cora em Todas as Vidas abarca as suas múltiplas facetas.

9. Cora Coralina, Quem É Você?

Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.

Nasci numa rebaixa de serra
entre serras e morros.
"Longe de todos os lugares".
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram as pedras.

Junto a estas decorreram
a minha infância e adolescência.

Aos meus anseios respondiam
as escarpas agrestes.
E eu fechada dentroda imensa serrania
que se azulava na distância
longínqua.

Numa ânsia de vida eu abria
o vôo nas asas impossíveis
do sonho.

Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia
caída e a república
que se instalava.

Todo o ranço do passado era
presente.
A brutalidade, a incompreensão,
a ignorância, o carrancismo.

Os versos acima fazem parte do extenso e fundamental poema Cora Coralina, Quem É Você?. No decorrer da criação vemos um retrato do contexto histórico e cultural que proporcionou o nascimento dessa grande poeta.

Ficamos conhecendo desde o seu contexto familiar específico como também as dificuldades que enfrentou para conseguir estudar. Revisitamos inclusive a condição política do país, marcado por um momento de transição.

Conforme avançamos nos versos, descobrimos não só o percurso pessoal de Ana Lins dos Guimarães Peixoto ao longo dos diversos períodos da sua vida (infância, adolescência, vida adulta e velhice), como também desvendamos os hábitos da sua região, no interior do Brasil.

10. Assim Eu Vejo a Vida

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.

O poema acima é atribuído à Cora Coralina, mas na realidade não é de sua autoria. De qualquer forma, é um belo poema que se destacou pela escrita parecida com a da poetisa goiana.

Em Assim Eu Vejo a Vida é sublinhada a capacidade de superação, de resiliência e a força para superar os obstáculos. O eu-lírico observa o seu princípio - os "tempos rudes" - e pondera as decisões que tomou até chegar onde chegou. Até em situações más, o sujeito poético consegue extrair algo bom: "o passado foi duro, mas deixou o seu legado".

As pedras mencionadas são o símbolo da adversidade. Elas têm um significado ao mesmo tempo positivo e negativo: por um lado são terríveis porque atravancam o caminho e provocam sofrimento, por outro são essenciais porque servem como lição de vida e aprendizado.

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