Filme Roma, de Alfonso Cuarón (resumo e análise)
Roma é um filme feito em preto e branco extremamente intimista e poético. Autobiográfico, é inspirado na infância do próprio diretor Alfonso Cuarón passada num contexto de classe média mexicana, durante os anos 1970.
A produção, que aborda especialmente as diferenças raciais e sociais, é também pioneira por ser o primeiro filme produzido por uma plataforma de streaming, a Netflix, a emplacar público e crítica.
[Cuidado, leitor, o texto abaixo contém spoilers]
Resumo
A história se passa durante um breve espaço de tempo - cerca de um ano - em um ambiente específico: a casa da família. Embora os personagens passeiem por outros espaços (o bairro pobre que abriga os namorados das empregadas, a casa de campo, a praia), a maior parte do desenrolar acontece dentro da casa localizada na Rua Tapeji.
A protagonista do longa de Cuarón é Cleo (interpretada por Yalitza Aparicio), uma das duas empregadas que trabalha para uma família de classe média alta.
A casa, situada no bairro de Roma, abriga originalmente avó, marido, mulher, quatro crianças, duas empregadas e um cão (Borras).
A narradora dessa história será Cleo, uma empregada/babá silenciosa que permeia o ambiente da casa e é responsável por todas as tarefas domésticas.
Entre as tarefas domésticas, Cleo circula por entre os ambientes da casa transmitindo e recebendo extremo afeto especialmente por parte das crianças, embora por vezes seja humilhada devido a sua condição de empregada.
O filme é marcado por contrastes sociais, por exemplo, enquanto a família vive em uma casa enorme, Cleo partilha um quartinho minúsculo nos fundos. O contraste entre as realidades é sublinhado também quando ela deixa o bairro de Roma para encontrar o pai da sua filha, na periferia da cidade.
Principais histórias do enredo
Duas grandes histórias correm em paralelo: Cleo engravida do sujeito com quem inicia a sua vida sexual e o patrão, o pai da família, abandona a casa para ir viver com a amante.
Assustada, com medo de ser mãe e pavor de ser demitida, Cleo descobre a gravidez indesejada com cerca de três meses. O pai, quando recebe a notícia, desaparece, deixando a moça ainda mais desesperada.
Quando finalmente reúne forças para contar à patroa, recebe inesperadamente acolhimento e cuidado. A senhora Sofia a leva para o hospital e Cleo passa a ser devidamente tratada.
A gestação segue tranquila até que, durante uma visita à loja de móveis para comprar o berço do bebê, a bolsa estoura e é preciso seguir as pressas para o hospital.
O segundo drama se desenrola quando a esposa começa a perceber o distanciamento do marido, que passa cada vez menos tempo em casa e se afasta por longos períodos de tempo. Em uma dessas viagens, ele decide não voltar, abandonando a família de vez. O pai das crianças decide ir viver com a amante.
Extremamente sofridas, sentindo na pele o abandono dos homens que escolheram ter o lado, Sofia e Cleo conseguem, aos poucos, reestruturarem a vida e seguir adiante.
Análise de Roma
Sobre o título
Aparentemente enigmático porque o longa se trata da realidade do México durante os anos setenta, o título Roma é, na verdade, uma referência ao bairro onde a história se passa.
O local é conhecido por abrigar a elite mexicana desde a primeira década do século XX e é, até os dias de hoje, um local residencial característico da classe média alta mexicana.
Uma curiosidade também pode ser levantada acerta do título. Existe um produto de limpeza muito comum utilizado no México: o detergente Roma.
Vale lembrar que a primeira cena do filme, ainda durante a exibição dos créditos, é do chão da casa sendo lavado pela empregada Cleo:
A câmera sublinha bastante aquela rotina da casa: o lavar da garagem, a presença dos baldes e das vassouras, o cotidiano dos afazeres domésticos.
O produto de limpeza Roma não aparece de modo explícito, mas, ao longo do filme, muitas vezes a cena da lavagem da garagem se repete, especialmente devido aos hábitos do cão Borras. Essa é também uma curiosidade que permeia a escolha do título do diretor mexicano.
As diferenças sociais
Enquanto as empregadas partilham um quarto minúsculo apertado entulhado com as camas e os armários ao fundo da casa, a família habita um imóvel confortável, repleto de espaço.
Em uma das cenas, passada durante à noite, quando as empregadas vão para o quarto, elas suspeitam que a patroa as esteja vigiando. Como a senhora reclama da conta de luz, elas apagam a única lâmpada que têm no cômodo e ascendem uma vela.
Outra grande diferença é possível perceber quando Cleo (Yalitza Aparicio) vai a procura do homem que a engravidou e vemos as condições precárias do bairro. Sem asfalto, com poças de água para todo lado e tábuas ao chão, casas improvisadas chegavam a ser feitas de telha.
Vale sublinhar que Cleo e a Adela (interpretada por Nancy García García), têm claramente origem indígena, assim como as outras empregadas que aparecem ao longo do filme. A família dona da casa, por sua vez, possui traços inteiramente caucasianos.
Outra questão significativa se refere à língua: quando Cleo se comunica com Adela fala mixteca, um dialeto indígena da aldeia natal de ambas, já quando fala com a família usa o espanhol.
O filme deixa bastante claro a divisão social e a relação com a etnia.
Um filme autobiográfico
O diretor/roteirista Alfonso Cuarón foi efetivamente criado no bairro Roma, mais precisamente em uma casa situada na rua Tepeji.
A casa onde Cuarón viveu figura em uma das cenas do filme inclusive. A casa da família que aparece no longa não foi, no entanto, a que abrigou o crescimento do diretor.
As filmagens foram feitas numa casa alugada nos arredores da casa original, no entanto, os móveis e acessórios foram inseridos de modo a se aproximarem ao máximo daquilo que rodeava Cuarón na infância.
Outra reminiscência do passado do diretor vem a tona durante uma das idas ao cinema. Cleo vai com as crianças assistir Sem Rumo no Espaço (1969) que é, desde a infância, um dos filmes favoritos do diretor.
A última cena do filme também apresenta uma dedicatória autobiográfica misteriosa: Para Libo. Após pesquisa ficaremos sabendo que Libo foi a empregada/babá que trabalhou na casa de Cuarón e inspirou a criação da personagem Cleo.
Quem é o Professor Zovek?
Uma referência autobiográfica é a presença do Professor Zovek, que no filme interpreta o professor de artes marciais do homem que engravidou Cleo. Um personagem conhecido do grande público durante os anos 1960 e 1970 no México, o Professor é desconhecido pela maior parte do público mundial.
No longa metragem, ele surge apenas duas vezes. Em uma breve cena em que aparece na televisão de um restaurante em um programa chamado Siempre en Domingo e na cena em que treina um grupo de rapazes em campo aberto na periferia.
Professor Zovek na verdade chamava-se Francisco Xavier Chapa del Bosque e teria nascido no berço de uma família abastada na cidade de Torreón. Ele ficara famoso em rede nacional entre os anos 1968 até a sua morte, em 1972, em um acidente misterioso acontecido durante as filmagens.
Além de aparecer na televisão, o Professor também fazia shows públicos sempre com números que demonstravam a sua força sobre-humana. Para as crianças ele era uma espécie de super-herói real.
Sua fama maior veio da aparição frequente no show Siempre en Domingo, onde apresentava números diferentes sublinhando a sua capacidade heroica de se safar de situações adversas. Em um outro programa voltado para a família, o Domingos Espectaculares, Zovek quebrou o recorde mundial ao fazer 8.350 abdominais em menos de cinco horas.
Depois dos seus anos de estrelato, a sua memória se perdeu tendo sido somente agora retomada por Cuarón.
Sobre a dedicatória final
No final do filme lemos uma dedicatória: Para Libo. Libo é o apelido de Liboria Rodrígues, empregada que trabalhou com a família de Cuarón desde que ele era um bebê de apenas nove meses.
A história de Roma teria sido inspirada na vida de Liboria e, para homenageá-la, Cuarón insere o seu nome na última cena do filme.
Libo, a empregada da família, de origem indígena, teria sido uma constante na sua infância, muitas vezes mais importante que a própria mãe. É ela quem dá banho, acorda, nina, faz companhia, cuida das quatro crianças com extremo carinho e cuidado.
Um elogio às mulheres
O longa metragem pode ser lido também como uma homenagem às mulheres, representada especialmente pelas personagens de Cleo e da mãe.
Num contexto extremamente machista, as duas mulheres, de camadas sociais completamente distintas, são abandonadas pelos seus respectivos companheiros.
Cleo se entrega ao primo do namorado de Adela pela primeira vez e, quando descobre a gravidez e a comunica, o rapaz desaparece. Numa segunda tentativa de confrontá-lo com a realidade, ela vai a sua procura no bairro afastado em que ele mora.
Quando o encontra, logo após o treinamento de artes marciais do sujeito, Fermín fica furioso. O diálogo do par é o seguinte:
- É que eu estou grávida.
- E eu com isso?
- O pequeno é seu.
- Nem pensar.
- Juro que é.
- Já disse, nem pensar. Se não quiser que eu quebre você e seu "pequeno", não repita o que disse e nunca mais me procure. Faxineira de merda!
Fermín não só não se responsabiliza como aproveita a ocasião para fazer uma ameaça e humilhar aquela mulher com quem partilhou momentos íntimos.
A mãe da família, patroa de Cleo, também é igualmente abandona por aquele que considerava ser o seu homem. O marido, que passava pouquíssimo tempo em casa, um dia decidiu ir embora, deixando os quatro filhos para trás.
Depois de algum tempo ele volta à casa para buscar os seus pertences e nunca mais envia dinheiro para ajudar a sustentar a família que formou (e abandonou).
Em uma das cenas de maior emoção no filme, as duas mulheres - patroa e empregada, branca e índia, rica e pobre - suspendem as suas diferenças e partilham um sofrimento comum.
Em meio a uma crise de choro, Sofia profere a seguinte dura constatação:
"no final, nós mulheres estamos sempre sozinhas"
E a verdade é que, apesar da solidão exposta no filme, Roma também mostra como as duas mulheres conseguem passar por cima da situação de abandono em que se encontram.
Cleo perde a sua filha - o bebê nasce morto - mas aos poucos, com a rotina da família, vai se restabelecendo.
Sofia, diante da ausência do marido, se aventura em um trabalho full time para sustentar a família e transmite para os filhos a sensação de segurança, garantindo que eles ainda irão viver belas aventuras.
Contexto histórico: o massacre de Corpus Christi
O filme é extremamente cuidadoso ao reproduzir a época tanto no que diz respeito aos figurinos quanto aos cenários e hábitos.
No longa metragem realista vemos uma referência ao massacre de Corpus Christi (também conhecido como El Halconazo), acontecido no dia 10 de junho de 1971.
O conflito levou à morte de 120 estudantes segundo o registro oficial, informalmente acredita-se que o número de vítimas tenha sido ainda maior.
O protesto era inicialmente composto por estudantes que pediam a liberdade de presos políticos e mais investimento na educação. Com a forte reação do governo, a marcha a princípio pacífica transformou-se rapidamente num banho de sangue.
Os bastidores das filmagens
Em Roma, Cuarón decidiu inovar no seu modo de filmar. Os atores que participaram do longa só recebiamo texto com as cenas no dia das filmagens, o objetivo era que a composição fosse mais espontânea e natural.
A atriz escolhida para protagonizar o filme - Yalitza Aparicio - foi descoberta em uma aldeia no interior e fez a sua primeira estreia no cinema com o filme do diretor mexicano.
Por que a imagem dos aviões é tão frequente?
Ao longo do filme é possível observar uma série de aviões que cruzam a paisagem. Esse traço verídico permaneceu no longa porque o bairro de Roma está muito próximo das rotas dos aviões.
Outra explicação possível é o fato de Cuarón adorar aviões e ter sonhado na infância com ser piloto (há uma cena inclusive em que um dos meninos conta à Cleo que vai ser piloto quando crescer).
Uma terceira justificativa para a presença dos aviões é o desejo do diretor transmitir, através do simbolismo do avião, que todas as situações são provisórias e passageiras.
Ficha Técnica
Título original | Roma |
Lançamento | 30 de agosto de 2018 |
Diretor | Alfonso Cuarón |
Roteirista | Alfonso Cuarón |
Gênero | Drama |
Duração | 135 minutos |
Atores principais | Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey |
Prêmios |
Globo de Ouro (2019) de Melhor Diretor e Melhor Filme Estrangeiro. |