16 músicas mais famosas da Legião Urbana (com comentários)

Laura Aidar
Laura Aidar
Arte-educadora, fotógrafa e artista visual
Tempo de leitura: 35 min.

Uma das mais conhecidas e amadas bandas de rock brasileiras certamente é Legião Urbana.
Fundada no começo a década de 80 em Brasília, reuniu Renato Russo, Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato Rocha.

O grande destaque foi para o líder Renato Russo, cantor e compositor que faleceu vítima de AIDS em 1996.

Poucos dias após sua partida a banda resolveu encerrar as atividades, deixando um legado de mais de cem canções. São músicas que embalaram uma geração inteira e continuam ecoando nos corações dos fãs.

1. Eduardo e Mônica

Quem um dia irá dizer que não existe razão
Nas coisas feitas pelo coração
E quem me irá dizer que não existe razão

Eduardo abriu os olhos mas não quis se levantar
Ficou deitado e viu que horas eram
Enquanto Mônica tomava um conhaque
No outro canto da cidade
Como eles disseram

Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer
E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer
Um carinha do cursinho do Eduardo que disse
Que tem uma festa legal e a gente quer se divertir

Festa estranha, com gente esquisita
Eu não tô legal, não aguento mais birita
E a Mônica riu e quis saber um pouco mais
Sobre o boyzinho que tentava impressionar
E o Eduardo, meio tonto só pensava em ir pra casa
É quase duas e eu vou me ferrar

Eduardo e Mônica trocaram telefone
Depois telefonaram e decidiram se encontrar
O Eduardo sugeriu uma lanchonete
Mas a Mônica queria ver um filme do Godard

Se encontraram então no Parque da Cidade
A Mônica de moto e o Eduardo de camelo
O Eduardo achou estranho e melhor não comentar
Mas a menina tinha tinta no cabelo

Eduardo e Mônica era nada parecido
Ela era de Leão e ele tinha dezesseis
Ela fazia medicina e falava alemão
E ele ainda nas aulinhas de inglês

Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus
De Van Gogh e dos Mutantes
De Caetano e de Rimbaud
E o Eduardo gostava de novela
E jogava futebol-de-botão com seu avô

Ela falava coisas sobre o Planalto Central
Também magia e meditação
E o Eduardo ainda tava no esquema
Escola, cinema, clube, televisão

E, mesmo com tudo diferente
Veio meio de repente
Uma vontade de se ver
E os dois se encontravam todo dia
E a vontade crescia
Como tinha de ser

Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia
Teatro e artesanato e foram viajar
A Mônica explicava pro Eduardo
Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar

Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer
E decidiu trabalhar
E ela se formou no mesmo mês
Em que ele passou no vestibular

E os dois comemoraram juntos
E também brigaram juntos muitas vezes depois
E todo mundo diz que ele completa ela e vice-versa
Que nem feijão com arroz

Construíram uma casa uns dois anos atrás
Mais ou menos quando os gêmeos vieram
Batalharam grana e seguraram legal
A barra mais pesada que tiveram

Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília
E a nossa amizade dá saudade no verão
Só que nessas férias não vão viajar
Porque o filhinho do Eduardo
Tá de recuperação ah-ah-ah

E quem um dia irá dizer que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração
E quem me irá dizer
Que não existe razão

Eduardo e Mônica ficou gravada nas mentes e corações dos jovens como o retrato de um amor entre duas pessoas com personalidades e vivências opostas, mas que por "alguma razão" se apaixonam e constroem família.

A canção integra o álbum Dois, lançado em 1986 e foi inspirada em Leonice e Fernando, casal amigo de Renato Russo. Embora não represente fielmente o casal, a canção foi adaptada para criar uma história de amor improvável e cativante.

Em 2020 foi lançado nos cinemas o longa-metragem Eduardo e Mônica, que leva para as telas esse curioso romance onde os "opostos se atraem".

2. Tempo Perdido

Todos os dias quando acordo
Não tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo

Todos os dias
Antes de dormir
Lembro e esqueço
Como foi o dia
Sempre em frente
Não temos tempo a perder

Nosso suor sagrado
É bem mais belo
Que esse sangue amargo
E tão sério
E selvagem! Selvagem!
Selvagem!

Veja o sol
Dessa manhã tão cinza
A tempestade que chega
É da cor dos teus olhos
Castanhos

Então me abraça forte
E diz mais uma vez
Que já estamos
Distantes de tudo
Temos nosso próprio tempo
Temos nosso próprio tempo
Temos nosso próprio tempo

Não tenho medo do escuro
Mas deixe as luzes
Acesas agora
O que foi escondido
É o que se escondeu
E o que foi prometido
Ninguém prometeu
Nem foi tempo perdido
Somos tão jovens

Tão jovens! Tão jovens!

Composta por Renato Russo, Tempo Perdido também está no disco Dois, o segundo da banda. A música traz uma letra contundente sobre o tempo e a maneira como lidamos como sua passagem.

A letra começa com um relato em primeira pessoa contando como o protagonista se sente. Em seguida, outra pessoa é incluída, que pode ser também um diálogo com os jovens, mostrando suas vulnerabilidades enquanto afirma suas potências de vida.

Para saber mais, leia: Música Tempo Perdido, de Legião Urbana: análise e explicação

3. Pais e Filhos

Estátuas e cofres
E paredes pintadas
Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender

Dorme agora
É só o vento lá fora
Quero colo, vou fugir de casa
Posso dormir aqui com vocês?
Estou com medo tive um pesadelo
Só vou voltar depois das três
Meu filho vai ter nome de santo
Quero o nome mais bonito

É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Por que se você parar pra pensar
Na verdade não há

Me diz por que que o céu é azul
Explica a grande fúria do mundo
São meus filhos que tomam conta de mim

Eu moro com a minha mãe
Mas meu pai vem me visitar
Eu moro na rua não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar
Já morei em tanta casa que nem me lembro mais
Eu moro com os meus pais

É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Por que se você parar pra pensar
Na verdade não há

Sou uma gota d'água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais não lhe entendem
Mas você não entende seus pais
Você culpa seus pais por tudo
E isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer

A relação entre pais e filhos é muitas vezes cheia de conflitos, principalmente durante a adolescência. A diferença entre as gerações, as expectativas, anseios e dificuldades de comunicação e de lidar com os sentimentos contribuem para que, às vezes, a dinâmica seja complicada.

Esse tema é abordado em Pais e Filhos, canção que integra As Quatro Estações, álbum lançado em 1989.

A música apresenta uma história conturbada que acaba da maneira mais trágica possível: o suicídio de uma jovem. O fato é apresentado logo na primeira estrofe e partir dele se desenrola uma reflexão sobre as relações e a vida.

4. Há tempos

Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade
Muitos temores nascem do cansaço e da solidão
Descompasso, desperdício
Herdeiros são agora da virtude que perdemos

Há tempos tive um sonho
Não me lembro, não me lembro

Tua tristeza é tão exata
E hoje o dia é tão bonito
Já estamos acostumados
A não termos mais nem isso

Os sonhos vêm, os sonhos vão
E o resto é imperfeito

Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira

E há tempos nem os santos têm ao certo
A medida da maldade
E há tempos são os jovens que adoecem
E há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção

Meu amor, disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
Lá em casa tem um poço mas a água é muito limpa

Uma das mais conhecidas músicas da banda é tempos. Presente no disco As Quatro Estações, de 1989, essa canção possui uma das letras mais tristes da Legião.

Nela se revela um estado emocional depressivo e desesperançoso, onde a personagem se encontra perdida entre os conflitos da juventude, da solidão e da angústia.

Interessante perceber a passagem em que Renato Russo afirma que "há tempos são os jovens que adoecem". Essa pode ser uma referência à contaminação pelo vírus HIV, doença que ele próprio adquiriu.

5. Monte Castelo

Ainda que eu falasse a língua do homens
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria

É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidece

O amor é o fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer

Ainda que eu falasse a língua do homens
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria

É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder

É um estar-se preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor
É um ter a quem nos mata a lealdade
Tão contrário a si é o mesmo amor

Estou acordado e todos dormem
Todos dormem, todos dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade

Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria

Monte Castelo é uma música romântica da Legião Urbana que fala do amor de maneira sublime e poética.

Misturando referências bíblicas e trechos de poemas do português Luís de Camões, a canção busca definir o que é o amor, esse sentimento indecifrável e intenso a que todos estamos sujeitos.

Foi lançada no álbum As Quatro Estações, de 1989.

Talvez você também se interesse: Poema Amor é fogo que arde sem se ver (com Análise e Interpretação)

6. Será

Tire suas mãos de mim
Eu não pertenço a você
Não é me dominando assim
Que você vai me entender

Eu posso tá sozinho
Mas eu sei muito bem aonde estou
Cê pode até duvidar
Acho que isso não é amor

Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que é tudo isso em vão?
Será que vamos conseguir vencer?

Uoh-oh-oh-oh-oh-oh

Nos perderemos entre monstros
Da nossa própria criação
Serão noites inteiras
Talvez por medo da escuridão

Ficaremos acordados
Imaginando alguma solução
Pra que esse nosso egoísmo
Não destrua o nosso coração

Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que é tudo isso em vão?
Será que vamos conseguir vencer?

Uoh-oh-oh-oh-oh-oh

Brigar pra quê? Se é sem querer
Quem é que vai nos proteger?
Será que vamos ter de responder
Pelos erros a mais, eu e você?

O disco de estreia da banda, intitulado Legião Urbana, foi lançado no início de 1985 e já apresentou várias faixas que se tornaram sucesso, uma delas Será.

A música fala sobre uma relação amorosa de dominação, onde o casal tem uma dinâmica abusiva e confusa. Aqui, um deles se mostra insatisfeito e disposto a transformar essa relação, ainda que tenha dúvidas e receios.

7. Vento no Litoral

De tarde eu quero descansar, chegar até a praia e ver
Se o vento ainda está forte
E vai ser bom subir nas pedras
Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora

Agora está tão longe
Vê, a linha do horizonte me distrai
Dos nossos planos é que tenho mais saudade
Quando olhávamos juntos na mesma direção

Aonde está você agora
Além de aqui dentro de mim?

Agimos certo sem querer
Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil eu sem você
Porque você está comigo o tempo todo

E quando vejo o mar
Existe algo que diz
Que a vida continua e se entregar é uma bobagem

Já que você não está aqui
O que posso fazer é cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos
Lembra que o plano era ficarmos bem?

Ei, olha só o que eu achei, cavalos-marinhos

Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora

Essa faixa está no disco V, quinto álbum da banda, lançado em 1991.

Aqui o que vemos é uma letra que mostra com profundidade a saudade e o luto por uma relação que se encerrou, seja pela morte de um dos dois ou simplesmente pelo término.

O personagem busca conforto na natureza e na observação da paisagem para tentar compreender seus sentimentos, refletindo sobre a dor da perda, mas se dando conta de que a vida continua e merece ser desfrutada.

9. Índios

Quem me dera ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha

Quem me dera ao menos uma vez
Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano de chão
De linho nobre e pura seda

Quem me dera ao menos uma vez
Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente

Quem me dera ao menos uma vez
Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
Fala demais por não ter nada a dizer

Quem me dera ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante
Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Quem me dera ao menos uma vez
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
Sua maldade, então, deixaram Deus tão triste

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho, entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do iní­cio ao fim

E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi

Quem me dera ao menos uma vez
Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes

Quem me dera ao menos uma vez
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado

Quem me dera ao menos uma vez
Como a mais bela tribo
Dos mais belos índios
Não ser atacado por ser inocente

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho, entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim

E é só você que tem a cura pro meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui

Essa é uma bela música com uma letra sensível que consegue abordar uma questão histórica e política e, ao mesmo tempo, falar sobre algo muito íntimo e individual.

O próprio título da canção já entrega um assunto evidente, que é a maneira como os portugueses aportaram em território brasileiro e a relação de interesse, exploração e dominação que desenvolveram com os povos indígenas.

Entretanto, ao analisar a letra por outra perspectiva, percebemos que Renato falava também sobre si e sua dificuldade de existir em um "mundo doente", sobre relações falsas de afeto e a desesperança.

10. Que País é Este

Nas favelas, no senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação

Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

No Amazonas, no Araguaia-ia-ia
Na Baixada Fluminense
Mato Grosso, Minas Gerais
E no nordeste tudo em paz

Na morte eu descanso
Mas o sangue anda solto
Manchando os papéis
Documentos fiéis
Ao descanso do patrão

Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

Terceiro mundo se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as alma
Dos nossos índios num leilão

Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

A indignação sobre os problemas do Brasil e a má administração pública toma conta nessa música da Legião Urbana.

Apesar de ter sido escrita na década de 80 e representar bem aquele momento, infelizmente ela continua atual. Por isso, ainda hoje muitas pessoas se identificam com o ar de revolta expresso pela banda.

Leia também: Música Que País É Este, de Legião Urbana

11. Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto

Quando o sol bater
Na janela do teu quarto
Lembra e vê
Que o caminho é um só

Por que esperar
Se podemos começar
Tudo de novo
Agora mesmo

A humanidade é desumana
Mas ainda temos chance
O sol nasce pra todos
Só não sabe quem não quer

Quando o sol bater
Na janela do teu quarto
Lembra e vê
Que o caminho é um só

Até bem pouco tempo atrás
Poderíamos mudar o mundo
Quem roubou nossa coragem?

Tudo é dor
E toda dor vem do desejo
De não sentirmos dor

Quando o sol bater
Na janela do teu quarto
Lembra e vê
Que o caminho é um só

Mesmo com as inúmeras músicas sobre angústia e desespero, a banda também cantou a esperança e o amor. Esse é um exemplo, que traz uma mensagem de confiança e força para que, mesmo com as adversidades, nós possamos seguir.

A faixa está no álbum As Quatro Estações, de 1989.

12. Perfeição

Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação
Celebrar a juventude sem escola
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião
Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade

Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais
Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras e sequestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda hipocrisia e toda afetação
Todo roubo e toda a indiferença
Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã

Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar um coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo o que é gratuito e feio
Tudo que é normal
Vamos cantar juntos o Hino Nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão

Vamos festejar a inveja
A intolerância e a incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada
Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isso com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção

Venha, meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão

Venha, o amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha, que o que vem é perfeição

Talvez a música mais contundente e crítica da banda seja Perfeição.

Com uma abordagem ácida, irônica e cheia de indignação, Renato Russo lista diversos males da humanidade. Toda a miséria, injustiça, desamor e maldade do ser humano são entoados como se fossem uma celebração, deixando evidente as contradições presentes na sociedade.

Ao final, a crítica é revelada de maneira mais direta, fazendo uma ode à liberdade e ao amor. A canção está em Descobrimento do Brasil, sexto álbum do grupo, de 1993.

Para saber mais: Análise da Música Perfeição de Legião Urbana

13. Quase Sem Querer

Tenho andado distraído
Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso
Só que agora é diferente
Sou tão tranquilo e tão contente

Quantas chances desperdicei
Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava provar nada pra ninguém

Me fiz em mil pedaços
Pra você juntar
E queria sempre achar explicação pro que eu sentia
Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira
Mas não sou mais
'Tão criança oh oh
A ponto de saber tudo

Já não me preocupo se eu não sei por que
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você

'Tão correto e 'tão bonito
O infinito é realmente
Um dos deuses mais lindos
Sei que, às vezes, uso
Palavras repetidas
Mas quais são as palavras
Que nunca são ditas?

Me disseram que você
Estava chorando
E foi então que eu percebi
Como lhe quero tanto

Já não me preocupo se eu não sei por que
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu quero o mesmo que você

Esta está no disco Dois, de 1986. Aqui, a ideia de oposição entre sentimento e razão transparece de maneira interessante.

Sentimentos a princípio conflitantes como confusão e alegria, indecisão e tranquilidade, são colocados lado a lado para nos dizer que sim, é possível que convivam juntos. Apesar de contraditórias, essas emoções fazem parte dos seres humanos, muito mais complexos do que o imaginado.

14. O Teatro dos Vampiros

Sempre precisei de um pouco de atenção
Acho que não sei quem sou
Só sei do que não gosto
E destes dias tão estranhos
Fica poeira se escondendo pelos cantos
Este é o nosso mundo
O que é demais nunca é o bastante
E a primeira vez é sempre a última chance

Ninguém vê onde chegamos
Os assassinos estão livres, nós não estamos
Vamos sair mas não temos mais dinheiro
Os meus amigos todos estão procurando emprego
Voltamos a viver como há dez anos atrás
E a cada hora que passa envelhecemos dez semanas

Vamos lá, tudo bem eu só quero me divertir
Esquecer, dessa noite ter um lugar legal pra ir
Já entregamos o alvo e a artilharia
Comparamos nossas vidas
Esperamos que um dia
Nossas vidas possam se encontrar

Quando me vi tendo de viver
Comigo apenas e com o mundo
Você me veio como um sonho bom
E me assustei
Não sou perfeito
Eu não esqueço

A riqueza que nós temos
Ninguém consegue perceber
E de pensar nisso tudo, eu, homem feito
Tive medo e não consegui dormir
Vamos sair mas não temos mais dinheiro
Os meus amigos todos estão procurando emprego
Voltamos a viver como há dez anos atrás

E a cada hora que passa
Envelhecemos dez semanas
Vamos lá, tudo bem eu só quero me divertir
Esquecer, dessa noite ter um lugar legal pra ir
Já entregamos o alvo e a artilharia
Comparamos nossas vidas
E mesmo assim, não tenho pena de ninguém

O panorama brasileiro que se apresentava na época em que essa música foi escrita era de desilusão, principalmente com a política. Era início dos anos 90, o Brasil acabava de eleger democraticamente um presidente depois da ditadura, Fernando Collor. Mas o sujeito se mostrou mais um "vampiro", sugando a população, tanto que acabou sofrendo impeachment.

Os jovens estavam desesperançosos em busca de oportunidades de trabalho e a diversão parecia muito distante e urgente.

Teatro dos Vampiros faz parte do disco V, de 1991.

15. Faroeste Caboclo

Não tinha medo o tal João de Santo Cristo
Era o que todos diziam quando ele se perdeu
Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
Só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu

Quando criança só pensava em ser bandido
Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu
Era o terror da sertania onde morava
E na escola até o professor com ele aprendeu

Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro
Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar
Sentia mesmo que era mesmo diferente
Sentia que aquilo ali não era o seu lugar

Ele queria sair para ver o mar
E as coisas que ele via na televisão
Juntou dinheiro para poder viajar
De escolha própria, escolheu a solidão

Comia todas as menininhas da cidade
De tanto brincar de médico, aos doze era professor
Aos quinze, foi mandado pro o reformatório
Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror

Não entendia como a vida funcionava
Discriminação por causa da sua classe e sua cor
Ficou cansado de tentar achar resposta
E comprou uma passagem, foi direto a Salvador

E lá chegando foi tomar um cafezinho
E encontrou um boiadeiro com quem foi falar
E o boiadeiro tinha uma passagem e ia perder a viagem
Mas João foi lhe salvar

Dizia ele "estou indo pra Brasília
Neste país lugar melhor não há
'Tô precisando visitar a minha filha
Eu fico aqui e você vai no meu lugar"

E João aceitou sua proposta
E num ônibus entrou no Planalto Central
Ele ficou bestificado com a cidade
Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal

Meu Deus, mas que cidade linda
No Ano Novo eu começo a trabalhar
Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro
Ganhava cem mil por mês em Taguatinga

Na sexta-feira ia pra zona da cidade
Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador
E conhecia muita gente interessante
Até um neto bastardo do seu bisavô

Um peruano que vivia na Bolívia
E muitas coisas trazia de lá
Seu nome era Pablo e ele dizia
Que um negócio ele ia começar

E o Santo Cristo até a morte trabalhava
Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar
E ouvia às sete horas o noticiário
Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar

Mas ele não queria mais conversa
E decidiu que, como Pablo, ele ia se virar
Elaborou mais uma vez seu plano santo
E sem ser crucificado, a plantação foi começar

Logo logo os maluco da cidade souberam da novidade
"Tem bagulho bom ai!"
E João de Santo Cristo ficou rico
E acabou com todos os traficantes dali

Fez amigos, frequentava a Asa Norte
E ia pra festa de rock, pra se libertar
Mas de repente Sob uma má influência dos boyzinho da cidade
Começou a roubar

Já no primeiro roubo ele dançou
E pro inferno ele foi pela primeira vez
Violência e estupro do seu corpo
Vocês vão ver, eu vou pegar vocês

Agora o Santo Cristo era bandido
Destemido e temido no Distrito Federal
Não tinha nenhum medo de polícia
Capitão ou traficante, playboy ou general

Foi quando conheceu uma menina
E de todos os seus pecados ele se arrependeu
Maria Lúcia era uma menina linda
E o coração dele pra ela o Santo Cristo prometeu

Ele dizia que queria se casar
E carpinteiro ele voltou a ser
Maria Lúcia pra sempre vou te amar
E um filho com você eu quero ter

O tempo passa e um dia vem na porta
Um senhor de alta classe com dinheiro na mão
E ele faz uma proposta indecorosa
E diz que espera uma resposta, uma resposta do João

Não boto bomba em banca de jornal
Nem em colégio de criança isso eu não faço não
E não protejo general de dez estrelas
Que fica atrás da mesa com o cu na mão

E é melhor senhor sair da minha casa
Nunca brinque com um Peixes de ascendente Escorpião"
Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse
"Você perdeu sua vida, meu irmão"

"Você perdeu a sua vida meu irmão
Você perdeu a sua vida meu irmão
Essas palavras vão entrar no coração
Eu vou sofrer as consequências como um cão"

Não é que o Santo Cristo estava certo
Seu futuro era incerto e ele não foi trabalhar
Se embebedou e no meio da bebedeira
Descobriu que tinha outro trabalhando em seu lugar

Falou com Pablo que queria um parceiro
E também tinha dinheiro e queria se armar
Pablo trazia o contrabando da Bolívia
E Santo Cristo revendia em Planaltina

Mas acontece que um tal de Jeremias
Traficante de renome, apareceu por lá
Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo
E decidiu que, com João ele ia acabar

Mas Pablo trouxe uma Winchester-22
E Santo Cristo já sabia atirar
E decidiu usar a arma só depois
Que Jeremias começasse a brigar

Jeremias, maconheiro sem-vergonha
Organizou a Rockonha e fez todo mundo dançar
Desvirginava mocinhas inocentes
Se dizia que era crente mas não sabia rezar

E Santo Cristo há muito não ia pra casa
E a saudade começou a apertar
Eu vou me embora, eu vou ver Maria Lúcia
Já 'tá em tempo de a gente se casar

Chegando em casa então ele chorou
E pro inferno ele foi pela segunda vez
Com Maria Lúcia Jeremias se casou
E um filho nela ele fez

Santo Cristo era só ódio por dentro
E então o Jeremias pra um duelo ele chamou
Amanhã às duas horas na Ceilândia
Em frente ao Lote 14, é pra lá que eu vou

E você pode escolher as suas armas
Que eu acabo mesmo com você, seu porco traidor
E mato também Maria Lúcia
Aquela menina bosal pra quem jurei o meu amor

E o Santo Cristo não sabia o que fazer
Quando viu o repórter da televisão
Que deu notícia do duelo na TV
Dizendo a hora e o local e a razão

No sábado então, às duas horas
Todo o povo sem demora foi lá só para assistir
Um homem que atirava pelas costas
E acertou o Santo Cristo, começou a sorrir

Sentindo o sangue na garganta
João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir
E olhou pro sorveteiro e pras câmeras e
A gente da TV que filmava tudo ali

E se lembrou de quando era uma criança
E de tudo o que vivera até ali
E decidiu entrar de vez naquela dança
Se a via-crucis virou circo, estou aqui

E nisso o sol cegou seus olhos
E então Maria Lúcia ele reconheceu
Ela trazia a Winchester-22
A arma que seu primo Pablo lhe deu

Jeremias, eu sou homem. coisa que você não é
E não atiro pelas costas não
Olha pra cá filha da puta, sem-vergonha
Dá uma olhada no meu sangue e vem sentir o teu perdão

E Santo Cristo com a Winchester-22
Deu cinco tiros no bandido traidor
Maria Lúcia se arrependeu depois
E morreu junto com João, seu protetor

E o povo declarava que João de Santo Cristo
Era santo porque sabia morrer
E a alta burguesia da cidade
Não acreditou na história que eles viram na TV

E João não conseguiu o que queria
Quando veio pra Brasília, com o diabo ter
Ele queria era falar pro presidente
Pra ajudar toda essa gente que só faz

Sofrer

Faroeste Caboclo foi lançada em 1987 no disco Que País É Este 1978/1987. Talvez naquele momento os integrantes da banda não tivessem noção da relevância e impacto que essa música teria na juventude brasileira da época, se estendendo até os hoje.

O fato é que a música, escrita em 1979 por Renato Russo, figura entre uma das mais conhecidas do rock brasileiro, fazendo parte da chamada "fase trovadora" do autor.

A letra conta sobre João de Santo Cristo e sua saga, exibindo momentos dramáticos em uma narrativa parecida com os faroestes e exibe paixão, injustiça, honra e violência.

Em 2013 o cineasta René Sampaio levou para as telas a história, lançando o filme de mesmo nome que tem no elenco Fabrício Boliveira e Ísis Valverde.

Para uma análise mais detalhada, leia: Música Faroeste Caboclo de Legião Urbana

16. Hoje a Noite Não Tem Luar

Ela passou do meu lado
Oi, amor! Eu lhe falei
Você está tão sozinha
Ela então sorriu pra mim

Foi assim que a conheci
Naquele dia junto ao mar
As ondas vinham beijar a praia
O sol brilhava de tanta emoção
Um rosto lindo como o verão
E um beijo aconteceu

Nos encontramos a noite
Passeamos por aí
E num lugar escondido
Outro beijo lhe pedi

Lua de prata no céu
O brilho das estrelas no chão
Tenho certeza que não sonhava
A noite linda continuava
E a voz tão doce que me falava
O mundo pertence a nós

E hoje a noite não tem luar
E eu estou sem ela
Já não sei onde procurar
Não sei onde ela está

Hoje a noite não tem luar
E eu estou sem ela
Já não sei onde procurar
Onde está meu amor?

Essa é uma versão de Hoy Me Voy Para México, da banda porto-riquenha Menudo, grande sucesso na América Latina nos anos 80.

Renato Russo apresentou sua releitura durante o Acústico MTV, exibido em 1992. Antes de cantá-la ele fez o comentário "É cafona, mas é bonita."

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Laura Aidar
Laura Aidar
Arte-educadora, artista visual e fotógrafa. Licenciada em Educação Artística pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e formada em Fotografia pela Escola Panamericana de Arte e Design.