Os quadros mais impressionantes de Hieronymus Bosch
Um pintor a frente do seu tempo, que retratou realidades ora fantásticas ora religiosas, investindo em um trabalho profundamente detalhado, esse foi Hieronymus Bosch, um holandês que marcou a pintura do século XV.
Os personagens que protagonizavam as telas de Bosch eram monstros, criaturas híbridas, figuras religiosas, animais, homens vulgares em cenas improváveis. Suas criações provocadoras e inusitadas serviram de influência para os surrealistas, que viriam a descobrir o trabalho do holandês muitos séculos mais tarde.
Descubra agora quem foi Hieronymus Bosch e conheça as suas principais telas.
1. O Jardim das Delícias Terrenas
Considerada a pintura mais complexa, intensa e misteriosa do artista holandês, O Jardim das Delícias Terrenas apresenta várias telas dentro de uma mesma tela contendo micro-retratos fantásticos.
Os três painéis carregam elementos irracionais - enigmas excêntricos - e o tema central da pintura é a criação do mundo, com destaque para o paraíso e para o inferno.
Na parcela da obra a esquerda vemos um campo paradisíaco, bíblico, onde os corpos encontram prazer e descanso. Existem três personagens principais (Adão, Eva e Deus) em meio a um gramado verde bucólico cercado de animais.
A tela do meio, por sua vez, apresenta o encontro do bem com o mal. A imagem está superpopulada e possui alusão a elementos simbólicos como a maçã, emblema da tentação de Adão e Eva no paraíso. Já há, nessa parcela da imagem, uma menção à vaidade representada pelo pavão. Os seres humanos e animais são ilustrados em posições invertidas demonstrando a desordem do mundo.
A pintura situada à direita representa o inferno e possui inúmeras referências à música. Na imagem, visivelmente sombria e noturna, vemos uma série de seres sendo torturados e devorados por criaturas estranhas. Há fogo, pessoas em sofrimento, vômito, cenas de pesadelo. As ilustrações de Bosch seriam oriundas dos sonhos?
No painel a direita de O Jardim das Delícias Terrenas muitos críticos julgam que Bosch teria se projetado discretamente numa representação:
Quando fechado, o Jardim das Delícias Terrenas mostra-se uma pintura que representa o terceiro dia da criação do mundo. A ilustração é um globo pintado em tons de cinza com a presença apenas de vegetais e minerais:
O Jardim das Delícias Terrenas foi exibido no palácio de Bruxelas em 1517. Em 1593 foi adquirido pelo rei espanhol Filipe II. A imagem chegou a ser pendurada no seu quarto, no Escorial. O mosteiro reunia ao todo nove obras de Bosch que foram adquiridas por Filipe II, um dos maiores entusiastas da arte do pintor holandês.
Desde 1936 o quadro mais famoso de Bosch encontra-se no Museu do Prado, em Madrid.
2. A Tentação de Santo Antão
A arte de Bosch costuma ser dividida em dois grupos: a tradicional (criada para ocupar conventos, mosteiros, ambientes cristãos de modo geral) e a não tradicional.
As produções não tradicionais apresentavam monges e freiras tendo atitudes repugnantes, o que trazia a tona uma polêmica anticlerical. No entanto, nessas telas com componentes religiosas mais perturbadora também não era possível supor que o pintor pretendesse representar a adoração pagã. Mesmo nos registros onde figuram rituais pagãos Bosh critica tais sacerdotes e excessos ritualistas.
Na tela A Tentação de Santo Antão assistimos o Santo ser assediado pela sua vida passada. Vemos a solidão e os desejos que tentam seduzir o homem que resolveu mudar de vida indo de encontro a sua religiosidade.
Assistimos o protagonista ser seduzido pelos demônios e pelas criaturas do mal, ao mesmo tempo que testemunhamos o Santo indo de encontro ao caminho do bem. A obra reúne os quatro elementos centrais do universo: o céu, a água, a terra e o fogo.
A Tentação de Santo Antão é um óleo sobre madeira de carvalho de dimensões grandes (o painel central possui 131,5 x 119 cm e os laterais 131,5 x 53 cm).
Trata-se de um tríptico, quando fechado A Tentação de Santo Antão apresenta os dois painéis exteriores abaixo.
A Tentação de Santo Antão pertence ao Museu Nacional de Arte Antiga desde 1910. Antes fazia parte da coleção real do Palácio das Necessidades. A versão corrente afirma que a tela estava nas mãos do humanista Damião de Góis (1502-1574).
Quando intimado pela inquisição sob acusação de não ser católico, Damião teria se defendido usando como argumento o fato de possuir um painel chamado As Tentações de Santo Antão, de Bosch.
3. A extração da pedra da loucura
A extração da pedra da loucura é considerada uma obra de conteúdo realista e pertence à primeira fase do pintor. Supõe-se que seja uma das primeiras obras de Bosch (pintada provavelmente entre 1475 e 1480), ainda que entre alguns críticos paire uma dúvida sobre a autenticidade do quadro.
A tela possui uma cena central e ao seu redor consta a seguinte inscrição feita com uma elaborada caligrafia: Meester snijit die Keije ras Mijne name is Lubbert Das. O texto, traduzido para o português, significa: "Mestre, tira-me depressa essa pedra, meu nome é Lubber Das".
O quadro retrata a sociedade humanista que cercava o pintor e carrega quatro personagens. A cirurgia para remoção da pedra da loucura é feita ao ar livre, em meio a um campo verde deserto.
O suposto cirurgião carrega um funil na cabeça, como se fosse um chapéu, e é considerado por muitos críticos como um charlatão. Bosch teria escolhido a cena para denunciar aqueles que se aproveitavam da ingenuidade alheia.
A crítica também se estenderia à Igreja, pois vemos presente na imagem um padre que parece ratificar o procedimento que está sendo feito. A mulher, também religiosa, carrega um livro na cabeça e assiste sem expressar qualquer reação o procedimento em que o camponês parece ser enganado.
Christian Loubet, pesquisador de História da Arte, descreve o quadro da seguinte maneira:
"Num microcosmo circular, um cirurgião (a ciência), um monge e uma religiosa (a religião) exploram um infeliz paciente sob o pretexto de extirpar de seu cérebro a pedra da loucura. Ele nos olha assustado enquanto a falsidade e o escárnio manifestam a verdadeira alienação dos compadres (funil, livro fechado, mesa sexuada...): é a Cura da loucura."
A paisagem de fundo parece remeter à cidade natal de Bosch pois apresenta uma igreja semelhante com a Catedral de São João e uma planície característica da região.
A extração da pedra da loucura é o trabalho mais antigo conservado de Bosch. A obra é um óleo sobre madeira com 48 cm por 45 cm e encontra-se no Museu do Prado.
4. O Filho Pródigo
Os críticos afirmam que a tela O Filho Pródigo foi a última obra pintada por Hieronymus Bosch. A peça datada de 1516 tem como referência a parábola do filho pródigo, uma história bíblica presente no livro de Lucas (15: 11-32).
A história original possui como protagonista o filho de um homem muito rico que deseja conhecer o mundo. Ele aproxima-se do pai e pede uma parcela adiantada da sua herança para ir embora e usufruir dos prazeres fugazes da vida. O pai cede ao pedido, mesmo sendo contra a ideia.
Depois de partir e aproveitar tudo o que a vida tem para oferecer, o jovem rapaz se percebe sozinho e sem recursos e se vê obrigado a retornar, para pedir perdão ao pai. Quando volta para a casa é recebido com grande festa, o pai o perdoa e o patrimônio é reconstituído.
O quadro de Bosch ilustra justamente o momento de retorno do jovem à casa do pai, já sem dinheiro, cansado, com trajes modestos e rasgados e carregando mazelas pelo corpo. A casa que figura ao fundo aparece tão degradada quanto o personagem: o teto tem um enorme furo, as janelas estão caindo.
O Filho Pródigo é um óleo sobre madeira com diâmetro de 0,715 e também pertence ao Museu do Prado, situado em Madrid.
5. Os sete pecados capitais
Especula-se que Os sete pecados capitais tenha sido pintado por Bosch por volta de 1485 e no trabalho já é possível observar as primeiras criaturas híbridas que serão características da sua pintura.
Seres monstruosos aparecem de modo ainda discreto, mas virão a se perpetuar nas telas de Bosch ao longo dos anos. Nesse trabalho em especial transborda um interesse pedagógico em transmitir conhecimento daquilo que seria considerado o bom e o correto através da pintura.
Vemos nas ilustrações centrais retratos do cotidiano, da vida em sociedade nos ambientes domésticos. As imagens presentes no centro representam a gula, a acídia, a avareza, a luxúria, a inveja, a vaidade e a ira.
No círculo superior da esquerda observamos um moribundo, provavelmente recebendo a extrema unção. No círculo ao lado encontra-se ilustrada uma representação do paraíso com o céu azul e as entidades religiosas. É curioso observar o seguinte detalhe: nos pés de Deus aparece pintada uma representação da Terra.
Do lado inferior da tela, no círculo esquerdo, encontramos uma representação do inferno feito com tons soturnos e sombrios e assistimos seres humanos sendo torturados devido aos seus pecados.
Na imagem estão escritas as seguintes palavras: gula, acídia, soberba, avareza, inveja, ira e luxúria. O círculo inferior direito, por sua vez, apresenta um retrato do juízo final.
Há indícios de que o trabalho acima tenha sido inspirado na Tapeçaria de Girona, uma arte cristã produzida entre o fim do século XI e início do século XII. A Tapeçaria e o quadro partilham um mesmo tema cristão e uma estrutura bastante similar. A partir do século XIV a iconografia religiosa explorou muito o tema dos sete pecados capitais especialmente como forma de difusão pedagógica.
6. O carro de feno
O Carro de Feno provavelmente foi concebido em 1510 e é considerado das maiores obras de Bosch, ao lado de O Jardim das Delícias Terrenas. Ambas as obras são trípticos e partilham um desejo de instrução moralizante cristã. Através das suas pinceladas, o leitor, além de instruir-se, é alertado: mantenha-se longe dos pecados.
O quadro de Bosch parece derivar de um antigo ditado flamengo da sua época que afirmava: "O mundo é um carro de feno cada qual toma o que pode tirar."
Na parcela esquerda do quadro encontramos uma cena com Adão, Eva e Deus condenando-os a saírem do paraíso. No jardim bucólico, verde e vazio, vemos já a representação da cobra como um ser híbrido (metade humano e metade animal) que viria a tentar o homem.
No centro do quadro vemos muitos homens partilhando uma série de pecados: a cobiça, a vaidade, a luxúria, a ira, a preguiça, a avareza e a inveja. O carro de feno é cercado por seres humanos que procuram, alguns com a ajuda de ferramentas, retirar o máximo de feno que conseguem. Desavenças, brigas e assassinatos é o que resulta dessa competição pelo feno.
Na parte a direita da obra encontramos a representação do inferno com um incêndio ao fundo, criaturas demoníacas, uma construção inacabada (ou teria sido destruída?) além de pecadores sendo torturados pelo capeta.
O Carro de Feno pertence ao acervo permanente do Museu do Prado, em Madrid.
Descubra quem foi Hieronymus Bosch
Hieronymus Bosch foi o pseudônimo escolhido pelo holandês Jheronimus van Aken. Nascido por volta de 1450-1455, em uma província holandesa do Brabante Setentrional, o gosto pela pintura estava no sangue da família: Bosch era filho, irmão, sobrinho, neto e bisneto de pintores.
Hieronymus Bosch deu os seus primeiros passos na área - pintando e gravando - ao lado de familiares, dividindo o mesmo atelier. O pintor vivia num lar abastado e a família tinha relações próximas com o poder religioso local.
A Catedral de São João, que era um dos destaques da região, chegou a ter diversas peças encomendadas à família do pintor. Supõe-se, inclusive, que o pai de Bosch tenha chegado a pintar um afresco na Igreja em 1444.
O sobrenome artístico Bosch foi escolhido em homenagem a sua cidade natal 's-Hertogenbosch, que era informalmente chamada pelos moradores locais como Den Bosch.
Embora já tivesse boas condições para pintar, o seu cotidiano de trabalho melhorou ainda mais depois de ter se casado, em 1478, com uma jovem rica da região oriunda de uma família de mercadores da cidade vizinha de Oirschot. Aleyt Goijaert van den Mervenne, a esposa, forneceu à Bosch toda a estrutura que o artista precisava e alguns importantes contatos. O casal ficou junto até o final da vida e não teve filhos.
Pouco se sabe sobre a vida pessoal do pintor holandês além do casamento com Aleyt. Ao contrário da maior parte dos pintores, Bosch não deixou registrado diários, correspondências ou documentos que dessem notícia do seu mundo privado.
Seu trabalho foi produzido entre o final da Idade Média e o princípio do Renascimento - isto é, durante o final do século XV e princípio do século XVI.
A Europa daquela época vivia um período de forte ebulição cultural e já no início do século XVI Bosch gozava de uma excelente reputação no seu país e no exterior, especialmente na Espanha, na Áustria e na Itália.
No ano de 1567, o historiador Florentino Guicciardini já mencionava o trabalho do pintor holandês:
"Jerome Bosch de Boisleduc, muito nobre e admirável inventor de coisas fantásticas e bizarras..."
Dezessete anos mais tarde, o intelectual Lomazzo, autor do Tratado sobre a arte da pintura, escultura e da arquitetura, comentou:
"o Flamengo Girolamo Bosch, que na representação de aparências estranhas e temerosos e horríficos sonhos, era único e verdadeiramente divino."
Encontramos nas suas obras figuras psicodélicas, demoníacas ou fantásticas, mas também assistimos a reprodução de passagens bíblicas. A mulher do pintor pertencia à Irmandade de Nossa Senhora e o pai do artista, Antonius van Aken, era um conselheiro artístico da mesma Irmandade.
Entre 1486 ou 1487 Bosch juntou-se ao pai e a esposa e ingressou na confraria cristã que reverenciava a Virgem Maria. É curioso que Bosch se interessasse particularmente por pintar demônios. Em 1567 já o historiador holandês Mark van Vaernewijc sublinhava as particularidades de Bosch como:
"o fazedor de demônios, visto ele não ter rival na arte de pintar demônios."
O rei espanhol Filipe II foi um dos grandes entusiastas da pintura de Bosch e um dos seus maiores divulgadores. Para se ter uma ideia do fascínio do rei, Filipe II chegou a ter trinta e seis telas de Bosch na sua coleção privada. Levando-se em conta que Bosch havia deixado cerca de quarenta quadros, é de se espantar que o maior número de telas estivesse nas mãos do rei espanhol.
O estilo de Bosch se diferenciava dos demais quadros produzidos na época especialmente no que diz respeito ao estilo. Seabra Carvalho, a frente do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, que abriga a tela A tentação de Santo Antão, afirma em entrevista sobre a arte do pintor holandês:
“Esta é uma pintura profundamente moralista. Considerar Bosch um outsider é um erro: é-o apenas no sentido artístico. Ele pinta o que os outros pintam, apenas de outra maneira. Podemos dizer que o que lá está é delirante, mas faz parte do imaginário da sua época.”
O pintor veio a falecer na Holanda (mais precisamente em Hertogenbosch), no dia 9 de agosto de 1516.
Bosch e o surrealismo
Condernado por alguns como sendo um herege, Bosch foi autor de imagens consideradas estranhas, absurdas, fantasiosas e psicodélicas para o seu tempo.
Muitas vezes desconectadas da realidade, desproporcionais ou aludindo a universos paralelos, muitas das imagens retratadas por Bosch causaram polêmica entre os seus contemporâneos.
Os surrealistas, entre eles Dalí e Max Ernst, beberam muito no trabalho do pintor holandês. Em entrevista concedida em 2016 à BBC, Charles de Mooij, diretor do Noordbrabants Museum e especialista em Bosch, afirmou:
“os surrealistas acreditavam que Bosch fora o primeiro artista ‘moderno’. Salvador Dalí estudava os trabalhos de Bosch e o reconhecia como seu predecessor.”