8 obras importantes de Monteiro Lobato comentadas
Monteiro Lobato (1882-1948) permanece no imaginário coletivo como autor de clássicos da literatura infantil brasileira que chegaram a ser importados para o exterior.
Criador de um mundo fantástico, algumas de suas obras foram adaptadas para o teatro, para o cinema e para a televisão.
1. O Picapau Amarelo (1939)
Publicado em 1939, o livro mais famoso de Monteiro Lobato começa com uma carta escrita pelo Pequeno Polegar para a Dona Benta. No texto, ele fala sobre a mudança definitiva dos personagens que habitam o Mundo da Fábula para o tal Sítio do Picapau Amarelo.
Prezadíssima Senhora Dona Benta Encerrabodes de Oliveira: Saudações. Tem esta por fim comunicar v.Ex.ª que nós, os habitantes do Mundo da Fábula, não aguentamos mais as saudades do Sítio do Picapau Amarelo, e estamos dispostos a mudar-nos para aí definitivamente. O resto do mundo anda uma coisa das mais sem graça. Aí é que é bom. “Em vista disso, mudar-nos-emos todos para a sua casa - se a senhora der licença, está claro…”
Depois de concordar com a mudança, Dona Benta, a avó que é a autoridade da casa, bola uma série de regras para os dois mundos coexistirem. Quem ajuda a fazer a ponte entre esses dois universos - um real e um mágico - é a boneca de pano Emília que foi costurada para a sua neta Narizinho e ganhou vida.
Vale lembrar que Monteiro Lobato foi o primeiro escritor na literatura infantil a usar personagens da nossa cultura (personagens folclóricos, de histórias tradicionais especialmente contadas no interior do Brasil). É o caso da Cuca e do Saci Pererê, por exemplo.
Esse projeto literário patriótico, voltado para as crianças, estava estreitamente ligado com a ideologia do escritor, que era um entusiasta da cultura nacional e tinha como um dos principais lemas ajudar a divulgar a cultura brasileira.
No livro O Picapau Amarelo, Lobato mistura personagens do universo real com seres ficcionais (nacionais e internacionais).
O que Dona Benta sugere para não causar confusão na convivência entre dois mundos tão diferentes é que, com a mudança, cada grupo fique do seu lado de uma cerca. E assim se mudam os famosos personagens Pequeno Polegar, Chapeuzinho Vermelho, Peter Pan, Branca de Neve e as princesas Rosa Branca e Rosa Vermelha entre outras criaturas do universo fantástico.
Esses seres são tanto personagens da nossa cultura como da mitologia grega (caso de Pégaso e Quimera) e dos clássicos da literatura europeia (como Dom Quixote).
Para se conectar com as crianças, Monteiro Lobato além de trazer esses personagens já conhecidos do imaginário infantil faz também questão de escrever com uma linguagem simples e clara, acessível e cativante para todos.
Pouca gente sabe, mas esse lugar mítico inventado por Monteiro Lobato, o famoso Sítio do Picapau Amarelo existiu, de fato. A propriedade estava localizada em Taubaté, em São Paulo, e entrou para o imaginário de grande parte dos brasileiros que leram esses clássicos durante a infância.
2. Caçadas de Pedrinho (1933)
Lançado em 1933, em Caçadas de Pedrinho vemos o neto da Dona Benta com uma postura ao mesmo tempo corajosa e arrogante. Pedrinho vai a procura do animal de “miado esquisito”, do “tamanho dum bezerro”, com rastros que “também eram de gato, mas muito maiores” com quem se cruzou por acaso nas redondezas do sítio do Picapau Amarelo.
Com a suspeita de que teria visto uma onça, o menino aventureiro convoca os amigos Narizinho, Rabicó, Emília e Visconde de Sabugosa para irem atrás do animal, apesar do medo de se tratar de uma fera brava.
Pedrinho convence os amigos a irem juntos à procura da tal onça pintada dizendo que os adultos da casa teriam medo da grande aventura:
Vovó e Tia Nastácia são gente grande e, no entanto, correm até de barata. O que vale não é ser gente grande, é ser gente de coragem,… (...) Vou organizar a caçada e juro que hei de trazer essa onça aqui para o terreiro, arrastada pelas orelhas. Se você e os outros não tiverem coragem de me acompanhar, irei sozinho.
A obra Caçadas de Pedrinho é uma das mais polêmicas de Monteiro Lobato e ganhou recentemente uma adaptação feita por Maurício de Souza e Regina Zilberman. A nova versão suaviza trechos mais complicados que tocam na questão do racismo e da agressão aos animais.
O contexto em que Monteiro Lobato escreveu era completamente distinto do mundo em que vivemos hoje e alguns trechos da sua obra entram em conflito com as nossas lutas atuais.
Em Caçadas de Pedrinho, por exemplo, vemos as crianças se juntarem e agredirem a fera, cenas que nos dias de hoje causam espanto e desconforto nos leitores.
Toda a obra de Monteiro Lobato, apesar de ser muito valorizada e reconhecida, é controversa, pois apresenta trechos que incitam ao racismo, uma vez que a Tia Nastácia é chamada de forma pejorativa pelos outros membros do sítio por ser negra.
Na tentativa de atualizar a obra, a nova edição de Caçadas de Pedrinho lida de uma nova forma com esses trechos.
3. Reinações de Narizinho (1931)
Foi no primeiro capítulo de Reinações de Narizinho, publicado em 1931, que Monteiro Lobato reuniu as histórias iniciais do famoso sítio do Picapau Amarelo.
Já no princípio do livro ficamos conhecendo os celebrados personagens de Monteiro Lobato:
Numa casinha branca, lá no sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha de mais de sessenta anos. Chama-se dona Benta. Quem passa pela estrada e a vê na varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando:
— Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto...
Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas — Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho como todos dizem.
É em Reinações de Narizinho que encontramos a origem do universo mais conhecido de Lobato. É aqui, por exemplo, que Emília deixa de ser só uma boneca de pano feita pela tia Nastácia e ganha voz. O pó de pirlimpimpim, dado por Peninha, também é usado pela primeira vez.
Esse universo que Lobato criou servirá de abrigo para os personagens que irão se aventurar por inúmeras outras obras. É em Reinações de Narizinho que encontramos pela primeira vez a capacidade do escritor de fundir dois mundos tão diferentes.
De um lado estão os personagens do mundo real (de onde saem Dona Benta, Pedrinho, tia Nastácia, Narizinho), do outro os da imaginação (onde habitam a Cuca, o Saci, a Cinderela, etc).
4. Histórias de Tia Nastácia (1937)
Publicado em 1937, o livro que é contado por Tia Nastácia, traz como narradora uma senhora negra e mais velha que cozinha como ninguém. É ela que conta a história e é o fio condutor dos 43 contos reunidos na obra.
A personagem, conhecida por sua sabedoria popular, será a responsável por mostrar para as crianças do Sítio do Picapau Amarelo um pouco do rico folclore brasileiro.
Tia Nastácia é a porta-voz desse conhecimento coletivo partilhado, ela é simbolicamente uma representante do povo, de uma classe negra que veio de um contexto desprivilegiado se comparada aos outros moradores do sítio.
“Tia Nastácia é o povo. Tudo o que o povo sabe e vai contando, de um para outro, ela deve saber.”, resume Pedrinho.
Tia Nastácia narra uma série de contos brasileiros típicos cheios de aventura para entreter a garotada. Mais tarde, Dona Benta aproveita também para contar histórias infantis de outros lugares do mundo.
Aos poucos, as crianças vão percebendo que tanto as histórias da Tia Nastácia como as de Dona Benta afinal falam de questões universais, apesar das diferenças que existem em cada região.
É interessante reconhecer que as duas figuras mais velhas da turma representam classes completamente diferentes da população brasileira.
Dona Benta, branca, letrada, de classe social mais alta e com acesso a outras culturas, contrasta com Tia Nastácia, vinda de origem humilde, negra que não teve muito acesso à educação formal.
5. A menina do narizinho arrebitado (1921)
Foi em 1921 que Monteiro Lobato publicou o seu primeiro livro infantil, A menina do narizinho arrebitado.
O livro é a primeira obra passada no sítio do Picapau Amarelo, sendo o primeiro título de uma série que viria a ter mais de duas dezenas de obras.
O título escolhido pelo autor faz menção a uma das personagens principais da história:
Chama-se Lucia, mas ninguém a trata assim. Tem apelido. Yayá? Nenê? Maricota? Nada disso. Seu apelido é Narizinho “Rebitado”, - não é preciso dizer porque.
A primeira impressão - de 500 exemplares - foi parar em escolas paulistas, onde começou a ganhar o coração das crianças.
A coleção foi crescendo até chegar a 23 títulos com os personagens que encantaram várias gerações: a boneca de pano Emília, o menino Pedrinho, as contadoras de história Tia Nastácia e Dona Benta, a menina Narizinho, entre outros.
Monteiro Lobato, na época, notou que não havia literatura infantil original no Brasil, assim começou a publicar obras específicas para esse público.
Foi a partir da experiência na criação dos próprios filhos, diante da ausência de boas obras, que o criador percebeu essa lacuna editorial no Brasil.
6. O saci (1921)
O livro tem como personagem principal o Saci-Pererê, um símbolo da nossa cultura nacional, e foi publicado em 1921.
A obra, que contém 28 capítulos, tinha não só o objetivo de entreter as crianças como também de divulgar a cultura do interior do nosso país para as capitais apresentando personagens importantes e pouco conhecidos até então.
O saci — começou ele — é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe. Traz sempre na boca um pito aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha. A força dele está na carapuça, como a força de Sanção estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapuça de um saci fica por toda vida senhor de um pequeno escravo.
O desejo de escrever sobre o saci para crianças não surgiu de uma vontade ligeira ou simplesmente lúdica. Antes de compor o livro, o intelectual fez uma pesquisa com mais de trezentas páginas onde analisava esse personagem. Monteiro Lobato fez uma extensa investigação reunindo uma série de contos populares envolvendo o personagem misterioso.
Para apresentar o saci para as crianças de modo não assustador, o escritor precisou lapidar e adaptar uma série de histórias tradicionais do saci que poderiam amedrontar os mais novos.
O idealista Monteiro Lobato pretendia, com a ajuda das crianças, divulgar a cultura nacional não só através do saci como também de outros personagens como a Cuca e o Boitatá.
7. A chave do tamanho (1942)
Em A chave do tamanho (1942) Monteiro Lobato novamente mistura ficção e realidade, mas aqui de uma forma ainda mais original. O mundo assistia à Segunda Guerra Mundial correr quando o escritor resolveu se apropriar desse assunto difícil para ser tema de fundo da sua obra infantil.
— Novo bombardeio de Londres, vovó. Centenas de aviões voaram sobre a cidade. Um colosso de bombas. Quarteirões inteiros destruídos. Inúmeros incêndios. Mortos à beca.
O rosto de Dona Benta sombreou. Sempre que punha o pensamento na guerra ficava tão triste que Narizinho corria a sentar-se em seu colo para animá-la.
Na história presente em A chave do tamanho, a boneca de pano falante Emília tenta encontrar a “casa das chaves”, um espaço onde estariam todas as chaves do planeta. A sua ideia era encontrar a chave da guerra para desligar o confronto e salvar a vida de milhares de pessoas.
O desejo de Monteiro Lobato era apresentar a dura situação política que o mundo estava vivendo para as crianças, mas de uma forma com que elas conseguissem se relacionar.
Ao colocar Emília como participante ativa, capaz de “desligar” a guerra, Monteiro Lobato transmitiu uma mensagem de esperança para os pequenos.
8. Urupês (1918)
Urupês reúne uma série de contos e o título do livro foi retirado do último texto integrante da obra, que não é voltada para o público infantil.
O escritor foi considerado pela sua geração um inovador por utilizar vocábulos regionais, valorizando a fala do caipira e muitas vezes ousando na criação de frases de estrutura não habitual. A novidade se deu, portanto, em termos de conteúdo e de linguagem.
Vale lembrar que, na época em que Monteiro Lobato escreveu, a fala informal era malvista na literatura. Confira o trecho abaixo:
"Perguntem ao Jeca quem é o presidente da República .
– “O homem que manda em nós tudo?”
– “Sim.”
– “Pois de certo que há de ser o imperador.”
Em matéria de civismo não sobe de ponto.
– “Guerra? Te esconjuro! Meu pai viveu afundado no mato pra mais de cinco anos por causa da guerra grande. Eu, para escapar do ‘reculutamento’, sou inté capaz de cortar um dedo, como o meu tio Lourenço..."
Jeca se expressa sem qualquer preocupação com o português formal, sua fala é transcrita a partir da oralidade, respeitando as particularidades da fala do sujeito caipira.
Monteiro Lobato apresenta esse personagem de maneira não idealizada, evidenciando aspectos negativos, inclusive. Assim, apesar de colocar o caboclo como protagonista, contribui de certa forma para seja visto como um "preguiçoso" , "desleixado" e "ingênuo", características que o autor sugere serem também consequências da falta de políticas públicas e descaso com essas populações.
Depois de Monteiro Lobato surgiram outros autores que usaram a escrita informal, entre eles Mário de Andrade, Lúcio Cardoso, Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e Oswald de Andrade.
Urupês abriga os seguintes contos:
- Os faroleiros (escrito em 1917)
- O engraçado arrependido (escrito em 1917)
- A colcha de retalhos (escrito em 1915)
- A vingança da peroba (escrito em 1916)
- Um suplício moderno (escrito em 1916)
- Meu conto de Maupassant (escrito em 1915)
- "Pollice verso" (escrito em 1916)
- Bucólica (escrito em 1915)
- O mata-pau (escrito em 1915)
- Bocatorta (escrito em 1915)
- O comprador de fazendas (escrito em 1917)
- O estigma (escrito em 1915)
- Velho praga (escrito em 1914)
- Urupês (escrito em 1914)
O livro teve uma tiragem inicial de mil exemplares que logo se esgotou. As vendas foram especialmente impulsionadas pelo comentário que Rui Barbosa teria feito durante a campanha presidencial. Em março de 1919, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, perguntou quem ali conhecia Jeca Tatu.
Sobre Monteiro Lobato
Monteiro Lobato (1882-1948) foi o principal impulsionador da literatura infantil brasileira. Inovador, se propôs a escrever para crianças numa época em que praticamente não havia nenhuma produção voltada para esse público, quer no Brasil, quer na América Latina.
Nascido em Taubaté, São Paulo, Monteiro Lobato foi alfabetizado pela mãe e cresceu cercado das muitas histórias que leu na biblioteca do avô, o Visconde de Tremembé.
Formado em Direito, o escritor se casou com Maria Pureza da Natividade, com quem teve quatro filhos.
Enquanto trabalhava como promotor, em paralelo escrevia, como hobby, para uma série de jornais e revistas. Além de criar com as palavras, Lobato também fazia caricaturas, pinturas e desenhos.
Em 1918 o autor lançou o seu primeiro livro, chamado Urupês, que fez enorme sucesso. Pouco mais tarde, começou a escrever para crianças e a trabalhar também como editor.
A sua vontade de publicar literatura infantil, tarefa que empreendeu entre 1920 e 1945, surgiu enquanto acompanhava a formação dos filhos. Monteiro Lobato rapidamente reparou que as crianças só tinham acesso a adaptações de obras estrangeiras (especialmente europeias) ou a material didático.
Pioneiro, ele se propôs a criar obras para crianças que exaltassem a nossa cultura, ajudando a divulgar personagens importantes do folclore.
Numa das cartas dirigida ao amigo Godofredo Rangel partilhou a ideia que o movia:
Ando com várias ideias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. [...] Ora, um fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se for feito com arte e talento dará coisa preciosa.
Monteiro Lobato foi capaz de levar de forma consistente a frente o seu projeto e foi autor de uma série de obras infantis importantes para o nosso país.
Entretanto, sua escrita e seus posicionamentos vem sendo questionados hoje em dia, pois existem passagens em seus livros que revelam um pensamento racista e controverso.
Curiosidades sobre Monteiro Lobato
- O escritor nunca foi um grande aluno, especialmente na disciplina de português. Quando era jovem, Monteiro Lobato chegou a ser reprovado justamente na cadeira de línguas;
- Além de ser escritor, Monteiro Lobato também tinha muito interesse por pintura e produziu algumas caricaturas e pinturas de natureza morta. Em carta ao amigo Rangel datada de 9 de novembro de 1911, Lobato confessou: “Quando escrevo, pinto – pinto menos mal do que com o pincel”;
- Monteiro Lobato foi defensor do movimento eugênico no país, integrando a Sociedade Eugênica de São Paulo, que defendia o "embranquecimento" da população e medidas como esterilização compulsória de populações marginalizadas.
- Em dezembro de 1917, Lobato escreveu para um jornal tecendo duras críticas à exposição da artista modernista Anita Malfatti, chamando sua arte de "anormal" e "paranoica".
- O escritor viveu na Argentina, tendo se mudado para lá em 1946. Seus livros fizeram enorme sucesso em países da América Latina como o Uruguai e a Argentina.
Aproveite para ver também: