Poema sujo, de Ferreira Gullar
Escrito em Buenos Aires, no ano de 1976, o Poema sujo foi composto enquanto o poeta Ferreira Gullar estava exilado por motivos políticos. Os mais de dois mil versos criados na solidão do exílio são uma espécie de hino pela liberdade.
Resumo
Com fortes traços autobiográficos, os versos do Poema sujo são uma espécie de desabafo e retomam desde a infância do poeta vivida em São Luís do Maranhão até os ideais políticos que viria a desenvolver muito mais tarde.
Já nas primeiras páginas o eu lírico relembra cenas do passado:
Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís do
Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos
e pais dentro que um enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos louça que se quebraram já
Os versos retomam não apenas o cenário de São Luís como também os parentes próximos, o pai, o primo, o tio, o seu Neco, o sargento Gonzaga, figuras que povoavam a juventude do rapaz num tempo em que a poesia nem sequer existia como uma atividade pulsante.
A escrita segue flutuante e divaga sobre o próprio corpo do eu lírico, sobre os limites da carne, da mente, sobre os encontros entre homem e mulher, sobre as relações entre pais e filhos, sobre o estar na cidade, sobre a perenidade do tempo, sobre os abismos sociais.
Em termos estilísticos, a composição é uma mescla das várias fases da lírica do poeta. Há trechos, por exemplo, rigorosos em relação a métrica e a rima, e há trechos completamente despojados de qualquer preocupação formal.
Existem momentos repletos de onomatopeias e com orientações diretas ao leitor: "Para ser cantada com a música da Bachiana número 2, da Tocata, de Villa-Lobos" e existem trechos que soam puro monólogo interior, de um eu lírico despreocupado com qualquer possibilidade de ouvinte.
O Poema sujo conjuga uma série de possíveis poemas em um único trabalho e é riquíssimo justamente por contemplar essa multiplicidade de estilos e temas em um só lugar.
Crítica
Outro grande poeta brasileiro, Vinícius de Moraes, afirmou após a leitura do Poema sujo:
Ferreira Gullar […] acaba de escrever um dos mais importantes poemas deste meio século, pelo menos nas línguas que eu conheço; e certamente o mais rico, generoso (e paralelamente rigoroso) e transbordante de vida de toda a literatura brasileira.
A crítica é unanime ao afirmar que, no Poema sujo, Ferreira Gullar mistura todas as suas fases poéticas anteriores. Nele o poeta mescla desde elementos da sua primeira fase - a parnasiana, que respeitava com rigor a métrica e a rima - ao mesmo tempo que contempla elementos completamente díspares como a visualidade e o uso de onomatopeias.
O próprio Ferreira Gullar esclarece:
A verdadeira poesia tem muitas faces. Quando deixei de fazer poesia metrificada, […] caí no coloquial, que foi se reelaborando até virar uma linguagem complexa, abstrata, que conduziu à desintegração. Entretanto, com os poemas de cordel, voltei à linguagem banal, mas evidentemente politizada. No Poema sujo, a linguagem que vai aparecer resulta de todas essas experiências. Defendo, então, a tese de que não existe poesia pura. A poesia verdadeira não é sectária, não é unilateral.
Outro grande crítico da literatura brasileira, Alfredo Bosi, afirma: "o Poema sujo resume toda a poética de Ferreira Gullar, trazendo ecos das vozes juvenis e fazendo pressentir a polifonia dos motivos e formas que comporiam seus futuros poemas".
A história do Poema sujo
O Poema sujo foi escrito em 1976, em Buenos Aires, quando Ferreira Gullar estava exilado por motivos políticos. Antes o poeta já havia estado exilado em Moscou, em Santiago e em Lima. No Brasil, reinava a ditadura militar desde o golpe de 1964 e o governo tinha autorização para entrar em Buenos Aires para capturar presos políticos.
Gullar, temendo pelo seu futuro, decidiu escrever o Poema sujo como uma espécie de testemunho final, uma síntese de todas as suas crenças e de toda a sua poética antes que o calassem definitivamente. O poema foi escrito ao longo de seis meses durante o ano de 1975 em um apartamento localizado na Avenida Honorio Pueryredon, em Buenos Aires.
Vinícius de Moraes fez uma gravação do poema em voz alta, foi dessa forma que os versos chegaram ao Brasil. A publicação foi levada a frente pelo editor Ênio Silveira, que lançou o pequeno livro pela editora Civilização Brasileira.
Em entrevista concedida, Ferreira Gullar conta como escreveu o Poema sujo:
Por que o nome Poema sujo?
Há várias possíveis interpretações para a escolha do título do poema, uma delas é que o poema seria sujo porque trataria de temas torpes como o câncer, a fome, a solidão, a morte. Há quem diga também que o poema é sujo porque se trata de uma espécie de desabafo. No entanto, segundo o próprio autor:
o poema era sujo como o povo brasileiro, como a vida do povo brasileiro
Descubra o Poema sujo recitado pelo próprio autor
A convite do Instituto Moreira Salles, o poeta Ferreira Gullar aceitou recitar a sua obra-prima:
A biografia de Ferreira Gullar
Nascido no dia 10 de setembro de 1930, em São Luís do Maranhão, José Ribamar Ferreira - conhecido como o poeta Ferreira Gullar - nasceu no berço de uma família de classe média baixa composta por onze filhos. Mudou para o Rio de Janeiro na juventude. Foi exilado durante a ditadura militar tendo vivido em Moscou, em Santiago, em Lima e em Buenos Aires. Quando voltou ao Brasil, em 1977, foi preso e torturado pelos militares.
Em 2002, foi indicado para o Prêmio Nobel de Literatura. Em 2010, recebeu o prêmio Camões e o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2014, foi eleito para ocupar a cadeira número 37 da Academia Brasileira de Letras.
Morreu no Rio de Janeiro, aos oitenta e seis anos, no dia 4 de dezembro de 2016.
A trajetória literária de Ferreira Gullar
Gullar lançou o seu primeiro livro, intitulado Um pouco acima do chão, em 1949. Os poemas publicados nesse primeiro livro ainda tinham inspiração parnasiana e eram caracterizados pela métrica rigorosa e pelas rimas constantes.
Em 1954, publicou A luta corporal, um livro radicalmente distinto do primeiro porque já não tinha qualquer compromisso com o rigor e com a norma. O lançamento de luta corporal chamou a atenção dos mais importantes poetas brasileiros e no mesmo ano Augusto de Campos convidou Gullar para participar do movimento da poesia concreta.
O período chave para o movimento ocorreu entre o final de 1956 e o princípio de 1957. A Exposição Nacional de Arte Concreta - da qual participou Ferreira Gullar - aconteceu em São Paulo (em dezembro de 1956) e no Rio (em fevereiro de 1957). Em 1958, Gullar publicou um livro que reuniu as suas experiências com a poesia concreta.
Em 1961, o poeta assumiu a Fundação Cultural do Distrito Federal. Nesse momento foi contagiado pela ideologia marxista e entrou para o Centro Popular de Cultura. Foi o início de uma nova fase na poética de Gullar, que abandonou provisoriamente a poesia e passou a escrever romances de cordel.
Após o período investido na literatura de cordel, Gullar voltou a poesia, dessa vez com um viés mais político, e publicou Dentro da noite veloz. Logo a seguir veio o Poema sujo.
Como foi possível perceber, Ferreira Gullar transitou por diversos gêneros da literatura, indo desde a poesia, passando pela crônica e alcançado o teatro.
Segue abaixo a bibliografia completa do autor organizada a partir dos gêneros literários:
Poesia
Um pouco acima do chão - 1949
A Luta Corporal - 1954
Poemas - 1958
João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer (cordel) - 1962
Quem Matou Aparecida? (cordel) - 1962
A Luta Corporal e Novos Poemas - 1966
Por você, por Mim - 1968
Dentro da Noite Veloz - 1975
Poema Sujo - 1976
Na Virtigem do Dia - 1980
Crime na Flora ou Ordem e Progresso - 1986
Barulhos - 1987
Formigueiro - 1991
Muitas vozes - 1999
Crônica
A Estranha Vida Banal - 1989
Infantil e juvenil
Um Gato Chamado Gatinho - 2000
O Menino e o Arco-íris - 2001
O Rei que Mora no Mar - 2001
O Touro Encantado - 2003
Dr. Urubu e Uutras Fábulas - 2005
Conto
Gamação - 1996
Cidades Inventadas - 1997
Memória
Rabo de Foguete - 1998
Biografia
Nise da Silveira - 1996
Ensaio
Teoria do Não-Objeto - 1959
Cultura Posta em Questão - 1965
Vanguarda e Subdesenvolvimento - 1969
Augusto dos Anjos ou Morte e Vida Nordestina - 1976
Uma Luz no Chão - 1978
Sobre Arte - 1982
Etapas da Arte Contemporânea: do Cubismo à Arte Neoconcreta - 1985
Indagações de Hoje - 1989
Argumentação Contra a Morte da Arte - 1993
Relâmpagos - 2003
Sobre Arte, sobre Poesia - 2006
Teatro
Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come - 1966 - com Oduvaldo Vianna Filho
A saída? Onde fica a Saída? - 1967 - com Antônio Carlos Fontoura e Armando Costa
Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Glória - 1968 - com Dias Gomes
Um rubi no umbigo - 1978
O Homem como Invensão de si Mesmo - 2012