5 grandes poemas de Caio Fernando Abreu
Um dos grandes autores da literatura brasileira é Caio Fernando Abreu, dono de uma poesia visceral que arrebata os leitores há algumas gerações.
Apesar de ser bastante citado - especialmente devido às suas frases fortes -, a verdade é que o poeta gaúcho publicou pouquíssimos poemas em vida, esses trabalhos vieram à tona apenas postumamente. Nos versos de Caio encontramos como temas principais a solidão, a incompletude, o amor e o erotismo homoafetivo.
Conheça agora cinco das suas grandes criações.
1. (sem título)
Eu quero a vida.
Com todo o riscos
eu quero a vida.
Com os dentes em mau estado
eu quero a vida
insone, no terceiro comprimido para dormir
no terceiro maço de cigarro
depois do quarto suicídio
depois de todas as perdas
durante a calvície incipiente
dentro da grande gaiola do país
de pequena gaiola do meu corpo
eu quero a vida
eu quero porque quero a vida.
É uma escolha. Sozinho ou acompanhado, eu quero, meu
deus, como eu quero, com uma tal ferocidade, com uma tal
certeza. É agora. É pra já. Não importa depois. É como a quero.
Viajar, subir, ver. Depois, talvez Tramandaí. Escrever. Traduzir. Em solidão. Mas é o que quero. Meu deus, a vida, a vida, a vida.
A VIDA
À VIDA
Escrito na década de 70, o poema acima testemunha um desejo de viver poderosíssimo, que empurra o eu-lírico para experimentar o novo.
Trata-se de um poema frequentemente atribuído à juventude, que deixa transparecer esse impulso - algumas vezes até irresponsável - rumo à aventura. Lemos aqui uma vontade de ir embora, de viajar, de se expressar com toda a força, gestos tão característico dos jovens.
O sujeito poético ao longo dos versos não romantiza a vida e nem anula os seus aspectos negativos: antes pelo contrário, ele reconhece tudo o que há de ruim e as dificuldades pelo caminho (as castrações, as limitações do corpo e do Estado, as dores físicas e afetivas), mas ainda assim sublinha o seu impulso visceral de viver.
2. Rômulo
Era verão, era de tardezinha,
um de nós cantou uma música de Tom Jobim
Falando em verão, em tardezinha. O sol caiu no mar,
aquela luz lá embaixo se acendeu, descemos da Barra
pra Copacabana e fomos ver o show da Gal cantando
deixa sangrar.
Fazia calor, vestíamos inteirinhos de branco,
acreditávamos nas coisas dum jeito que seria tolo
se não fosse tão verdadeiro. E tão bonito
(a gente nem sabia, mas tudo era simples
e nossa dor não era quase nada.)
Dia seguinte, menti que ia morrer e você foi embora estudar acupuntura
Eu fiquei, viajei, tomei droga,
Gozado é que não morri.
Lemos acima apenas um trecho do poema Rômulo, escrito durante a década de 80.
Num contexto extremamente conservador, é de se louvar a escrita de Caio Fernando Breu que escancara a atração homoafetiva e expõe um sujeito sem vergonhas de se assumir nos seus desejos e hábitos.
Ao longo dos versos o eu-lírico descreve o seu cotidiano vulgar: o clima, as regiões da cidade que frequentava, a época do ano, a altura do dia, a trilha sonora do momento, a relação com o parceiro.
Com início, meio e fim, o poema trata ao mesmo tempo do passado, do presente e do futuro e dá conta do que foi o encontro com Rômulo e no que essa conexão se transformou.
3. (sem título)
quero escrever as coisas mais vadias
só porque minhas mãos estão tão frias
quero escrever as coisas mais amargas
e não encontro rima
nem motivo.
Caio escreveu os versos acima em pleno contexto da ditadura militar. O poema, datado de 2 e 3 de maio de 1979, desafiava na altura o status quo durante os anos de chumbo ao ousar falar de liberdade.
Nas linhas lemos um desejo de se expressar. Aqui o verso aparece quase que sem motivo: o eu-lírico deseja escrever porque sente que é necessário se expor, ainda que não saiba a razão nem a forma que irá dar ao seu desejo.
O contraste das mãos frias - sem vida - faz atrito com o ímpeto de escrever, que traz um sopro de energia o sujeito poético. Apesar de não saber o que irá escrever e que forma terá o seu texto, o eu-lírico sente que precisa se transbordar para o papel.
4. Breve memória
De ausência e distâncias te construo
amigo
amado.
E além da forma
nem mão
Nem fogo:
meu ser ausente do que sou
e do que tenho, alheio.Na dimensão exata do teu corpo
cabe meu ser cabe meu voo mais remoto
cabem limites transcendências
Na dimensão do corpo que tu tens
e que eu não toco
cabe o verso torturado
e um espesso labirinto de vontadesPorém não sabes.
Breve memória foi dedicada à Antônio Bivar e escrita no dia 13 de outubro de 1969 em Campinas - vale lembrar em que contexto político vivíamos: no o auge da repressão da ditadura militar.
Os versos acima são um trecho de um longo poema que tem como cerne a questão do desejo erótico e da relação entre dois corpos que querem se possuir.
Diante da ausência evidente, o eu-lírico deixa clara a sua vontade de estar com o outro e de explorar as dimensões do próprio corpo e do corpo daquele que deseja.
Em Breve memória, no entanto, não se trata apenas de uma dimensão física: o sujeito poético quer explorar além daquilo que pode tocar no amante/amigo demonstrando uma vontade de conhece-lo como um todo (corpo e alma).
5. FEVER 77º
Deixa-me entrelaçar margaridas
nos cabelos de teu peito.
Deixa-me singrar teus mares
mais remotos
com minha língua em brasa.
Quero um amor de suor e carne
agora:
enquanto tenho sangue.
Mas deixa-me sangrar teus lábios
com a adaga de meus dentes.
Deixa-me dilacerar teu flanco
mais esquivo
na lâmina de minha unhas.
Quero um amor de faca e grito
agora:
enquanto tenho febre.
O poema acima é dos mais belos exemplares da poesia erótica de Caio Fernando Abreu. Composto em 14 de janeiro de 1975, vemos uma lírica explícita, que desafia o leitor ao expor os desejos do eu-lírico com uma crueza ímpar.
O sujeito poético aqui é direto e não faz rodeios: ele sabe o que quer, como quer e quando quer. Já nos primeiros versos deixa claro que o objeto do seu desejo é alguém do mesmo sexo, uma exposição que para os anos de chumbo é deveras corajosa.
Mas esse não é o único movimento corajoso do poema: o eu-lírico ao longo dos versos expõe uma relação marcada também pelo masoquismo e pela violência, embora sobretudo permeada por um desejo voraz.
A poesia de Caio Fernando Abreu
Caio divulgou apenas pouquíssimos poemas em vida. Prece e Gesto foram publicados no Jornal Cruzeiro do Sul no dia 8 de junho de 1968. Os poemas Oriente e Press to Open foram publicados por sua vez no Suplemento Literário de Minas Gerais durante a década de 70. Esses são os únicos trabalhos poéticos que se têm notícia que foram lançados pelo escritor.
Apesar de não ter publicado um número significativo de poesias, Caio escreveu versos ao longo de praticamente toda a vida - é o que comprova o seu espólio - tendo dado os seus primeiros passos no gênero em 1968 e escrito os seus últimos poemas em 1996, ano da sua morte.
Em 2012 as pesquisadoras Letícia da Costa Chaplin e Márcia Ivana de Lima e Silva conseguiram reunir material de acervo doado pela família e por amigos de Caio e publicaram o livro Poesias Nunca Publicadas de Caio Fernando Abreu.
Quem foi Caio Fernando Abreu
Escritor, jornalista e dramaturgo, Caio Fernando Abreu foi um dos grandes nomes da geração dos anos oitenta.
Nascido no interior do Rio Grande do Sul - em Santiago do Boqueirão - escreveu o seu primeiro texto com apenas seis anos.
A família de Caio se mudou para a capital Porto Alegre em 1963. Três anos mais tarde o jovem publicou o seu primeiro conto na revista Cláudia e começou a escrever o seu primeiro romance.
Apesar de ter entrado nas graduações de Letras e Artes Cênicas, Caio não se formou em nenhum dos dois cursos. Em 1968 começou a trabalhar na redação da revista Veja, por isso se mudou para São Paulo.
Durante os anos setenta morou no Rio de Janeiro onde trabalhou como pesquisador e redator de algumas revistas. Durante os anos de chumbo foi perseguido pela ditadura militar e precisou se exilar na Europa tendo morado em Londres e Estocolmo.
Quando voltou ao Brasil recomeçou a escrever com força total produzindo aquelas que seriam consideradas as suas obras-primas, os livros O Ovo Apunhalado (1975) e Morangos Mofados (1982).
Caio recebeu uma série de prêmios, entre eles três vezes o Prêmio Jabuti, na Categoria Contos, Crônicas e Novelas. O escritor foi laureado também com o Prêmio Molière em 1989 pela peça de teatro A Maldição do Vale Negro, que escreveu com Luiz Artur Nunes. Dois anos mais tarde também recebeu o Prêmio da APC, de melhor romance do ano com o livro Onde andará Dulce Veiga?.