10 poemas imperdíveis de Cecília Meireles analisados e comentados
A carioca Cecília Meireles (1901-1964), dona de uma poesia intensa, intimista e visceral é, sem dúvida, uma das maiores escritoras da literatura brasileira.
Seus poemas, extremamente musicais, não estavam filiados a nenhum movimento literário específico. No entanto, a maioria dos críticos a veja como pertencente à segunda geração do modernismo brasileiro.
Entre os seus temas mais frequentes estão o isolamento, a solidão, a passagem do tempo, a efemeridade da vida, a identidade, o abandono e a perda. Cecília passeou por entre o jornalismo, a crônica, o ensaio, a poesia e a literatura infantil. Suas palavras vêm encantando gerações e serão aqui por nós lembradas.
1. Ou isto ou aquilo
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
Ou isto ou aquilo é um exemplar da poesia voltada para o público infantil. Cecília foi professora de escola, por isso esteve familiarizada com o universo das crianças.
O poema acima é tão importante que chega a dar nome ao livro que reúne 57 poemas. Lançado em 1964, a obra Ou isto ou aquilo é um clássico que vem percorrendo gerações.
Nos versos encontramos a dúvida, a incerteza, a indecisão infantil. O poema ensina sobre a escolha: escolher é sempre perder, ter algo significa necessariamente não ter outra coisa.
Os exemplos cotidianos, práticos e ilustrativos (como o do anel e da luva) servem para ensinar uma lição essencial para o resto da vida. Infelizmente, muitas vezes, é necessário sacrificar uma coisa em nome de outra. Cecília brinca com as palavras de uma maneira lúdica e natural e pretende se aproximar ao máximo do universo da infância.
Leia uma análise completa no artigo Análise do poema Ou isto ou aquilo de Cecília Meireles.
2. Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Motivo é o primeiro poema do livro Viagem, publicado em 1939, época do Modernismo. A composição se trata de um metapoema, isto é, um texto que se volta sobre o seu próprio processo de construção. A metalinguagem na poesia é relativamente frequente na lírica de Cecília Meireles.
A respeito do título, Motivo, convém dizer que para Cecília a vida se misturava com a escrita. Escrever fazia parte da sua identidade, uma condição essencial para a vida da escritora, como vemos no verso: "Não sou alegre nem sou triste: sou poeta".
O poema é existencialista e trata da transitoriedade da vida, muitas vezes com certo grau de melancolia, apesar da extrema delicadeza. Os versos são construídos a partir de antíteses, ideias opostas (alegre e triste; noites e dias; desmorono e edifico; permaneço e desfaço; fico e passo).
Uma outra característica marcante é a musicalidade da escrita. A lírica contém rimas, mas não com o rigor da métrica como no parnasianismo (existe e triste; fugidias e dias; edifico e fico; tudo e mudo). Vemos também que praticamente todos os verbos estão no tempo presente, o que demonstra que Cecília pretendia evocar o aqui e o agora.
3. Despedida
Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranquilo:
quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão.
Despedida está presente no livro Flor de poemas, publicado em 1972. Vemos nos versos a procura pela solidão. Essa busca é um caminho, faz parte de um processo.
A solidão é uma analogia para a vontade de morrer, que se expressará no final dos versos quando ela afirma: "Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra."
A construção do poema é feita com base no diálogo, com um interlocutor do outro lado, com quem se estabelece uma comunicação. Uma pergunta que fica é a quem que o eu-lírico se dirige exatamente. No sexto verso vemos, por exemplo, a seguinte questão "E como o conheces? - me perguntarão".
Despedida é uma criação marcada pela individualidade, repare no uso exaustivo dos verbos em primeira pessoa ("quero", "deixo", "viajo", "ando, "levo"). Essa sensação é reforçada pelo uso do pronome possessivo "meu", que se repete ao longo do poema.
Ouça o poema Despedida declamado por Diandra Ferreira:
4. Reinvenção
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Publicado no livro Vaga Música (1942), o poema Reinvenção conta com vinte e seis versos com rimas alternadas em três estrofes. O refrão não possui rimas, sendo repetido três vezes, reforçando a ideia que deseja transmitir.
Os versos apontam para a necessidade de se olhar ao redor a partir de uma nova perspectiva, experimentando a vida de uma maneira diferente, redescobrindo a cor do cotidiano.
Do ponto de vista negativo, a solidão também aparece ao longo do poema ("Não te encontro, não te alcanço..."). Por outro lado, consciente das dores da vida, o poema se encerra com esperança.
5. Interlúdio
As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.
Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.
Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.
Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.
Fico ao teu lado.
Interlúdio é, antes de mais nada, um poema que fala de uma entrega. Nele, se vê a necessidade de viver e sentir o momento sem se refugiar no passado ou se perder nas perspectivas de futuro.
O título (Interlúdio) quer dizer pausa, intervalo. Possivelmente é uma alusão ao gesto de refletir sobre os afetos e fazer um balanço da sua vida sentimental. A palavra interlúdio também quer dizer um trecho musical que interrompe duas cenas (ou dois atos), em uma peça dramática. Esse significado também não deve ser descartado porque a poética de Cecília está repleta de música.
Repare como o terceiro verso se repete e é o último a concluir a escrita. Apesar dos excessos do mundo, o sujeito sublinha aquilo que tem segurança: o desejo de estar ao lado do amado.
6. A bailarina
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.
Não conhece nem mi nem fá
Mas inclina o corpo para cá e para lá
Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.
Roda, roda, roda, com os bracinhos no ar
e não fica tonta nem sai do lugar.
Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.
O poema acima está inserido no livro infantil Ou isto ou aquilo (1964). Assim como os outros poemas inseridos na publicação, Cecília adota o uso de rimas marcadas e forte musicalidade. Os primeiros três versos de A bailarina são repetidos quase ao final do poema dando uma ideia de ciclo.
A produção literária infantil de Cecília procura alcançar o mundo de fantasia das crianças. A protagonista é uma menina comum, sem nome (provavelmente para promover uma identificação com o público leitor). Vemos nela as angústias naturais de uma criança que tem um único sonho: dançar.
Vale lembrar que o universo infantil era muito importante para Cecília, que foi professora de crianças e fundou da primeira biblioteca infantil do Rio de Janeiro. Ao longo dos ensaios publicados em vida é possível observar como a poeta tinha uma enorme preocupação com o destino da educação, especialmente nos primeiros anos de escola.
7. Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
O título do poema (Retrato) evoca uma imagem congelada, parada no tempo e no espaço. Os versos se referem tanto à aparência física quanto à angústia existencial interior, motivada pela noção da passagem do tempo.
Observamos os sentimentos de melancolia e solidão já característicos da poética de Cecília. Vemos também a tristeza manifestada pela consciência tardia da transitoriedade da vida.
A velhice se nota também a partir da degeneração do corpo. O eu-lírico olha para si mesmo, para aspectos internos e externos. O movimento apresentado nos versos acompanha o decorrer dos dias, no sentido da vida para a morte (a mão que perde a força, se torna fria e morta). O último verso sintetiza uma reflexão existencial profunda: onde foi que a essência do eu-lírico se perdeu?
Experimente visitar o artigo Análise do poema Retrato, de Cecília Meireles.
8. Encomenda
Desejo uma fotografia
como esta — o senhor vê? — como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.
Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.
Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.
Inserido no livro Vaga Música (1942), o poema parte de uma experiência profundamente biográfica. Trata-se de um poema autocentrado: que fala das dores, angústias e medos.
O poema Encomenda tem um tom sombrio, de amargura, apesar de haver aceitação sobre a passagem do tempo ("Deixe esta ruga, que me empresta um certo ar de sabedoria.")
Na última estrofe, observamos que, por mais que a passagem do tempo seja dura, não se pretende disfarçar o sofrimento nem as mágoas.
9. Elegia
Neste mês, as cigarras cantam
e os trovões caminham por cima da terra,
agarrados ao sol.
Neste mês, ao cair da tarde, a chuva corre pelas montanhas,
e depois a noite é mais clara,
e o canto dos grilos faz palpitar o cheiro molhado do chão.Mas tudo é inútil,
porque os teus ouvidos estão como conchas vazias,
e a tua narina imóvel
não recebe mais notícias
do mundo que circula no vento.
Os versos acima constituem um trecho do longo poema Elegia, que Cecília dedicou à memória da avó materna. A portuguesa Jacinta Garcia Benevides foi responsável pela criação da menina após ela ficar órfã.
Nos seis primeiros versos vemos o mundo em pleno funcionamento. Tudo parece obedecer à ordem natural da vida e o cotidiano caminha sem sobressaltos. A segunda parte do poema, por sua vez, destoa completamente se comparado aos versos iniciais. Se no princípio líamos vida, agora lemos morte, se enxergávamos plenitude, passamos a ver ausência.
Vale sublinhar que a morte aqui não é apenas a de quem partiu, mas também a do eu-lírico, que vê um pedaço de si tornar-se oco, vazio, em contraponto com o mundo cheio de vida ao redor.
10. As meninas
Arabela
abria a janela.
Carolina
erguia a cortina.
E Maria
olhava e sorria:
“Bom dia!”
Arabela
foi sempre a mais bela.
Carolina,
a mais sábia menina.
E Maria
apenas sorria:
“Bom dia!”
Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela;
uma que se chamava Arabela,
uma que se chamou Carolina.
Mas a profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,
que dizia com voz de amizade:
“Bom dia!”
O famoso poema As Meninas pertence ao livro infantil Ou isto ou aquilo (1964). Nele vemos uma breve historinha repleta de musicalidade, trata-se de uma forma de construir os versos que sugere quase uma canção.
O formato escolhido, aliás, não é gratuito: os versos rimados e a repetição facilitam a memorização das crianças e a seduzem a ler e reler o poema repetidas vezes.
A história das três meninas - Arabela, Carolina e Maria -, cada uma com as suas características particulares, é baseada em ações e é relativamente simples, porém extremamente visual. Ao apelar para imagens cotidianas, Cecília consegue aproximar o universo poético da realidade do pequeno leitor.
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