5 poemas emocionantes de Conceição Evaristo

Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Tempo de leitura: 7 min.

Conceição Evaristo (1946) é uma escritora brasileira contemporânea nascida em Minas Gerais. Além dos romances e livros de contos bastante célebres, a autora também é conhecida pela sua poesia ancorada na memória individual e coletiva.

1. Vozes-mulheres

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

A composição, que é uma das mais belas e famosas da autora, fala sobre mulheres de várias gerações que pertencem à mesma família. Descrevendo seus cotidianos e sentimentos, o eu-lírico vai narrando uma história de sofrimento e opressão.

A bisavó simboliza, assim, aquelas que foram sequestradas e trazidas para o Brasil em navios. Já a avó teria vivido no período da escravidão e da obediência forçada.

A geração da mãe, que trabalha como empregada doméstica, leva uma existência dura e marginalizada, mas começa a ecoar alguma revolta. Esse sentimento de resistência se exprime através do eu-lírico que escreve, mas ainda conta relatos de privação e violência.

Contudo, o futuro reserva mudanças e a voz de sua filha, que carrega toda essa herança, escreverá uma nova história de liberdade.

2. Da calma e do silêncio

Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

Tratando-se de uma espécie de "arte poética" de Conceição Evaristo, o poema reflete exatamente sobre o ato e o momento da escrita. Aqui, a poesia é associada aos sentidos, principalmente ao paladar, com expressões como "morder" e "mascar".

Escrever é, então, encarado como algo que devemos saborear com tempo e sem pressas, um processo longo através do qual se acha o "âmago das coisas". Por isso, o eu-lírico pede para não ser perturbado quando está calado ou parece distante.

É que, na verdade, seu olhar está buscando inspiração e sua mente está criando. Mesmo se estiver parado, o sujeito não quer que os outros o forcem a caminhar. Na sua experiência, a poesia nasce "da calma e do silêncio", conseguindo acessar um mundo interior que não existiria de outra forma.

3. Eu-Mulher

Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.

Perante uma sociedade que ainda se rege segundo estruturas patriarcais, Conceição Evaristo escreve uma ode às mulheres. Aqui, o eu-lírico se identifica como parte e representante dessa força feminina: falando de si mesma, está exaltando suas companheiras.

Com imagens que remetem para a fertilidade, o poema apresenta a gestação como um dom quase divino e mágico: "inauguro a vida".

Nos versos é sugerido que as mulheres são a origem e o motor da humanidade, já que são o "abrigo da semente" através do qual tudo nasce e floresce.

4. Certidão de óbito

Os ossos de nossos antepassados
colhem as nossas perenes lágrimas
pelos mortos de hoje.

Os olhos de nossos antepassados,
negras estrelas tingidas de sangue,
elevam-se das profundezas do tempo
cuidando de nossa dolorida memória.

A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros.

Uma das facetas do percurso da escritora, que se reflete amplamente nas suas obras, é a de militante do movimento negro brasileiro. Além de convocar memórias de um passado traumático e aterrador, o poema em análise vem demonstrar como o racismo se perpetuou através do tempo.

Lembrando a morte dos antepassados, o sujeito traça um paralelismo com os "mortos de hoje". Numa sociedade que continua fraturada e desigual, "a morte é certa" para alguns e não é por acaso que "a bala não erra o alvo".

Segundo o eu-lírico, que aponta práticas coloniais e opressoras, a certidão de óbito destes indivíduos já estava escrita "desde os negreiros". Ou seja, tanto tempo depois, a violência continua recaindo de forma desproporcional sobre eles pelo fato de serem negros.

O tema, atual e da máxima urgência, tem sido bastante debatido na vida pública internacional através domovimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).

5. Do fogo que em mim arde

Sim, eu trago o fogo,
o outro,
não aquele que te apraz.
Ele queima sim,
é chama voraz
que derrete o bivo de teu pincel
incendiando até ás cinzas
O desejo-desenho que fazes de mim.

Sim, eu trago o fogo,
o outro,
aquele que me faz,
e que molda a dura pena
de minha escrita.
é este o fogo,
o meu, o que me arde
e cunha a minha face
na letra desenho
do auto-retrato meu.

Nesta composição o sujeito poético declara que possui algo de poderoso que denomina de "o fogo". É graças a isso que toma a palavra e queima as imagens dele que foram pintadas por outras pessoas.

Com essa força criadora, o eu-lírico se reinventa continuamente e se exprime usando a "dura pena" da escrita. Deste modo, a produção literária se torna um veículo para se dar a conhecer ao mundo, através da sua perspectiva e não pelo olhar dos outros.

Assim, a poesia é apontada como um auto-retrato no qual podem ser encontrados vários fragmentos de suas dores e vivências.

Conceição Evaristo e seus principais livros

Nascida de uma família humilde que tinha nove filhos, Conceição Evaristo cresceu em uma comunidade de Belo Horizonte. Durante a juventude, ela conciliava os estudos com os trabalhos de empregada doméstica; mais tarde, prestou um concurso público e se mudou para o Rio de Janeiro, onde iniciou seu percurso acadêmico.

Retrato de Conceição Evaristo

No princípio da década de 90, Evaristo começou uma carreira literária riquíssima e multifacetada que inclui romances, contos, poemas e ensaios. Em paralelo, a autora também foi trilhando seu caminho como militante do movimento negro, com participações em inúmeros debates e manifestações públicas.

A temática das desigualdades sociais e os fenômenos relacionados com as opressões raciais, de gênero e de classe estão bastante presentes nas suas obras. Dois exemplos disso mesmo são os seus livros mais célebres: o romance Ponciá Vicêncio (2003) e a coletânea de contos Insubmissas lágrimas de mulheres (2011).

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Carolina Marcello
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.