12 poemas brilhantes de Ferreira Gullar

Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura
Tempo de leitura: 15 min.

Ferreira Gullar (1930-2016) é um dos maiores nomes da literatura brasileira.

O expoente da geração concretista é autor de versos que percorreram décadas e retratam muito da situação política e social brasileira.

Relembre agora 12 das suas espetaculares composições.

1. Poema Sujo

Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís do
Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos
e pais dentro que um enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos louça que se quebraram já

O trecho acima faz parte do Poema sujo, um extenso poema escrito quando Ferreira Gullar estava no exílio, na Argentina, por motivos políticos.

Corria o ano de 1976 e o Brasil vivia os anos de chumbo, o poeta assistia de longe a desgraça que se passava no seu país enquanto compunha a sua obra-prima, o Poema Sujo, um criação com mais de dois mil versos.

Ao longo da escrita o eu-lírico disserta sobre a solidão e sobre a importância da liberdade, sentimentos em consonância com o que se passava com o próprio Ferreira Gullar naquele momento.

Esses primeiros versos dão conta da origem do poeta: a cidade de nascimento, a casa que o abrigou, a paisagem de São Luís, a estrutura familiar. Esse pensamento se desdobrará em uma série de preocupações identitárias e políticas, passando a composição do eu individual para o nós coletivo.

Conheça uma análise aprofundada de Poema Sujo.

2. Homem comum

Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.

Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons,
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei

O sujeito poético em Homem comum (trecho acima) procura se identificar e por isso vai em busca da sua identidade.

Durante caminho de descobrimento, ele mapeia percursos materiais (representados pela carne) e imateriais (simbolizados pela memória). O sujeito então se apresenta como resultado das experiências que viveu.

Aqui o eu-lírico se aproxima do universo do leitor ("sou como você feito de coisas lembradas e esquecidas") demonstrando partilhar com ele experiências cotidianas ("ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião") e inquietações sobretudo humanas, transversais a todos nós.

3. Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

O poema escrito em primeira pessoa pretende promover uma reflexão profunda sobre a subjetividade do artista. Vemos aqui uma procura por autoconhecimento, um esforço para desvendar o interior e as complexidades do sujeito poético.

Convém sublinhar que não se trata só da relação do poeta com ele mesmo como também com todos os outros que estão a sua volta.

Os versos, sucintos, carregam uma linguagem seca, sem grandes rodeios, e têm como objetivo investigar aquilo que o eu-lírico carrega dentro de si.

Fagner, no princípio dos anos oitenta, musicou o poema Traduzir-se e fez do título do poema também o título do seu álbum, lançado em 1981.

4. No mundo há muitas armadilhas

No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha

Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Troia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)

No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já que a vida é louca?

Os versos acima compõem o trecho inicial do longo poema No mundo há muitas armadilhas.

A escrita traz uma reflexão sobre estar no mundo e os desafios que essa imersão representa tanto para o sujeito poético como para o leitor.

Ao falar de si, o eu-lírico acaba por falar um pouco de cada um de nós instigando o nosso pensamento crítico. Longe de mirar em leitores apáticos, Gullar procura deixar-nos inquietos e em estado de alerta, questionando o mundo ao nosso redor.

5. Uma fotografia aérea

Eu devo ter ouvido aquela tarde
um avião passar sobre a cidade
aberta como a palma da mão
entre palmeiras
e mangues
vazando no mar o sangue de seus rios
as horas
do dia tropical
aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos
seus jardins
eu devo ter ouvido
aquela tarde
em meu quarto?
na sala? no terraço
ao lado do quintal?
o avião passar sobre a cidade

Os versos acima compõem o trecho inicial de Uma fotografia aérea. Nesse belo poema o sujeito poético se debruça sobre a sua origem em São Luís do Maranhão.

A premissa da escrita é bastante original: havia passado de fato um avião que fez o registro daquela região onde nasceu o poeta. Teria ele visto a hora que o avião passou? O que havia ficado registrado na lente? O que o poeta iria se recordar a partir da imagem e o que transbordaria qualquer representação?

De modo ainda mais genérico, o poema suscita as seguintes dúvidas: o que uma fotografia é capaz de capturar? Os afetos e as experiências emocionais são capazes de ficarem registrados em uma imagem?

6. Como dois e dois são quatro

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena

como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.

O breve Como dois e dois são quatro é um poema com um tom social e político, assim como uma enorme parcela da lírica de Gullar.

Vale lembrar que o escritor foi exilado durante a ditadura justamente por levantar questões acerca da repressão e por lutar pela liberdade ideológica. Contestador e provocador, querendo saber os limites da liberdade e os constrangimentos da vida em sociedade, assim se compõe Como dois e dois são quatro.

Apesar de tratar de temas duros e questionamentos densos, o poema termina com um olhar solar e otimista.

7. Extravio

Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?

Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.

Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.

Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?

Os versos acima foram retirados do trecho inicial do poema Extravio. Aqui encontramos um sujeito poético a procura de si mesmo, tentando compreender como se tornou aquilo que é. Para isso ele busca vasculhar os rastros do seu passado, a procura de pistas da gênese desse amadurecimento.

O eu-lírico acredita que ao colocar uma lupa sobre o seu percurso (com quem se relacionou, os sentimentos que viveu na pele, os lugares por onde passou) conseguirá perceber melhor aquilo que é a ponto de lidar melhor consigo e com quem está ao redor.

8. Maio 1964

Na leiteria a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos
de leite
e no meu espelho meu rosto. São
quatro horas da tarde, em maio.

Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo
a vida
que é cheia de crianças, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de estar no mundo,
ter dois pés e mãos, uma cara
e a fome de tudo, a esperança.
Esse direito de todos
que nenhum ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar.

Mas quantos amigos presos!
quantos em cárceres escuros
onde a tarde fede a urina e terror.

Já a partir do título do poema podemos perceber qual será o seu assunto: a ditadura militar que interrompeu a vida de Ferreira Gullar, assim como atropelou e suspendeu os planos de uma série de outros brasileiros.

Nesse duro poema autobiográfico (encontramos acima apenas um trecho), lemos a repressão, a censura e as duras consequências vividas durante os anos de chumbo. Ao escolher a ditadura como tema, Gullar pretende manter viva na memória coletiva o que foram aqueles anos de terror e medo.

Enquanto o medo se aproxima dos muitos que discordavam do regime, outros tantos mantinham a sua rotina cotidiana "em iogurtes, coalhadas, copos de leite" sem grandes sobressaltos.

O eu-lírico, por sua vez, com 33 anos, assiste o rumo do país indignado e com desejo de mudança. Esperançoso, ele prega que todos tem direitos que "nenhum ato institucional ou constitucional pode cassar ou legar".

9. Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Cantiga para não morrer é um dos poucos poemas de amor de Ferreira Gullar, que costuma ter uma lírica mais voltada para as questões sociais e coletivas. Nos versos acima, no entanto, o sujeito poético se debruça sobre o sentimento da paixão.

O eu-lírico encontra-se entregue a uma sensação de enamoramento provocada pela "moça branca de neve". Não ficamos sabendo mais nada dessa mulher além da cor da sua pele, a descrição do poeta se foca mais no afeto do que propriamente no alvo do amor.

Ao contrário de grande parte dos poemas que tecem uma declaração, esse não se foca no encontro, mas sim no momento em que a amada decide partir. O apaixonado, sem saber bem como reagir diante dessa situação, apenas pede que ela o leve consigo de alguma forma.

Em 1984 o poema foi musicado e lançado por Fagner, confira o resultado abaixo:

10. A poesia

Onde está
a poesia? indaga-se
por toda parte. E a poesia
vai à esquina comprar jornal.

Cientistas esquartejam Púchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.

Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
meu poema é puro, flor
sem haste, juro!
Não tem passado nem futuro.
Não sabe a fel nem sabe a mel:
é de papel.

Já no primeiro trecho de A poesia é possível observar que se trata de um metapoema, uma criação que investiga a origem do verso e pretende compreender o lugar da lírica no mundo.

O sujeito poético deseja descobrir não só para que serve a poesia como qual é o seu espaço, a que lugar pertence, de que modo pode fazer a diferença nos nossos dias.

Não é apenas uma questão de descobrir de onde brota a lírica, mas sim também de investigar a sua motivação e a sua capacidade de transformação social.

11. Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.

Em Não há vagas, Gullar utiliza o poema como ferramenta de crítica social, apresentando diversos problemas coletivos e de ordem pública como sendo muito mais relevantes do que o próprio poema.

Mais uma vez ele faz uso da metalinguagem, evidente nos últimos versos, em que diz "O poema, senhores, não fede nem cheira". Essa frase quer dizer que, diante de tantas injustiças no mundo, seu ofício lírico se torna pequeno e irrelevante.

O curioso é que ao mesmo tempo em que faz uma "crítica ao poema", parece usar a ironia, afinal é o poema que comunica sua insatisfação.

12. Os mortos

Os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias

Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça.

Nessa construção poética, o autor aborda um dos maiores tabus da sociedade: a morte. Mas aqui, apresenta a relação entre os vivos e os que se foram de maneira misteriosa e ao mesmo tempo esperançosa.

Ao afirmar que os mortos "vêem o mundo", ele afirma também uma continuação dessas pessoas, mas agora pelos sentidos e sentimentos dos que ficaram.

O que Gullar propõe é uma integração entre passado e presente, entre os antepassados e as pessoas que seguem vivendo, dizendo que os valores e humores dos "ausentes de corpo e alma" permanecem.

Quem foi Ferreira Gullar

José de Ribamar Ferreira ficou conhecido no universo da literatura apenas como Ferreira Gullar. O escritor nasceu em São Luís do Maranhão no ano de 1930.

Aos 18 anos lançou o seu primeiro livro de poesias intitulado Um pouco acima do chão. Ainda jovem decidiu sair do interior rumo ao Rio de Janeiro onde se estabeleceu em 1951 e passou a atuar como revisor de textos da revista O Cruzeiro.

Retrato de Ferreira Gullar
Retrato de Ferreira Gullar.

Ferreira Gullar foi um dos grandes nomes da poesia concreta e neoconcreta brasileira. Seu livro A Luta Corporal (1954), já trazia sinais da sua experiência concreta. Dois anos mais tarde participou da primeira exposição de Poesia Concreta.

Continuou escrevendo ao longo das décadas se debruçando especialmente no gênero poético e na temática das questões sociais. Também redigiu para o teatro e compôs roteiros de novela.

Durante a ditadura militar se exilou na França, no Chile, no Peru e na Argentina. É dessa época o clássico Poema Sujo. É dele a célebre frase:

A arte existe porque a vida não basta.

Prêmios recebidos

Em 2007 Gullar recebeu um prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Ficção. Quatro anos mais tarde a façanha se repetiu com o mesmo prêmio, mas dessa vez na categoria poesia.

Em 2010 foi laureado com o importante Prêmio Camões. Nesse mesmo ano recebeu o título de Doutor Honoris Causa oferecido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Em 2014 foi eleito para ocupar um lugar na Academia Brasileira de Letras.

Ferreira Gullar discursando na ABL
Ferreira Gullar discursando na ABL.

Ferreira Gullar faleceu no dia 4 de dezembro de 2016 no Rio de Janeiro.

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Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).